AS MENINAS E O FIO DE CABELO
- JOSÉ FRANÇA
- há 1 dia
- 8 min de leitura
Este texto é dedicado às minhas 4 filhas: Jociele, Jocileia, Geizielle e Januacoelli
A relação entre as meninas e o fio de cabelo não é um mistério. É literária e histórica. Não é uma sombra da realidade vista na entrada da caverna, no mito de Platão. Não é uma linha tênue que separa as duas partes do ser esférico, acabando de vez com o hermafroditismo aristofânico. Mas ela bem poderia ser os fios de cobre numa obra conceptual de Tunga, aí, sim, quase um mistério, como também os milhares das longas tranças de Rapunzel, ou seja, faz parte dos fios fortes capazes de sustentar a subida da rainha má, do príncipe e, ainda, abrir as portas da paixão como o álibi para a fuga daquela prisão que parecia perpétua.

Esse fio pode ser a narrativa das “Mil e uma noites”. Os contos de Sheerazade que, a cada noite, enfrentava um drama: se o fio da narrativa fosse cortado, sua cabeça também seria e, com ela, a cabeça de milhares de outras mulheres, suas conterrâneas. Esta narrativa era a fonte de prazer do príncipe, a fonte de vida da esposa do sultão, ela, a mais famosa contadora de história, e de outras tantas do gênero: o gume afiado da palavra. Mas não é qualquer palavra. É a palavra que salva. É a palavra da vida, que dita o destino como o fio das Parcas: a vida de todas as mulheres de um reino nas mãos de uma jovem (ou melhor, no cérebro de uma adolescente).
Mas também pode ser o fio tecido e destecido por Penélope para enganar os príncipes dizendo que era para a mortalha de seu sogro Laerte, pai de Ulisses, que se encontrava adoentado, enquanto esperava pela volta de seu marido, preso no mar, depois de ter construído o cavalo de pau e vencido a Guerra de Troia. O príncipe de Ítaca fora castigado por ter humilhado o povo de Páris, o conquistador, protegido pela Deusa Vênus. Mas a esperança, a inteligência e a fidelidade de Penélope fizeram surgir o fio do tapete desenvolvido pela princesa grega, e, hoje, simboliza o fio do universo feminino, que, ao longo da história das mulheres, faz e se desfaz na construção contínua da vida.
A espera de Penélope é a expectativa da menina pelo primeiro fio de cabelo, o fio da puberdade, que se completa na menarca. É o amadurecer do óvulo e o desfazer dele no sangue menstrual, continuando, assim, até o cumprimento da função feminina da vida fértil para dar sequência a grande fibra da vida. É o filete de sangue presente no rompimento do hímen, inaugurando uma nova etapa do feminino: a fase mulher. É a espera pela gravidez no grande ciclo. É o primeiro fio de leite dizendo à futura mãe que ela está apta a alimentar seu filho. É o renovar constante de uma linha insistente em crescer. Outra vez o útero se prepara para a ovulação com objetivo de iniciar a construção de um novo ser. O filho cresce, o leite seca, mas fica o fio da espera que revigora a fonte para, no momento certo, jorrar novamente.
O fio penelopiano, tecido durante 20 anos na espera por Ulisses, representa toda a história da humanidade contada pela linha que une todas as mulheres: as bisas, as avós, as mães, as filhas, as netas, as bisnetas e, assim, sucessivamente, como Sheerazade redigindo, oralmente, a narrativa do universo feminino na árdua e linda luta para salvar a vida das mulheres e, dessa forma, salvar a raça humana.
O fio pode ser interpretado também como os fios do cabelo cortado de Joana para se passar por seu irmão João, não para negar seu gênero, mas para lhe garantir vida e sobrevivência. Para conferir o fio da Sabedoria que o demiurgo lhe havia concedido, ela não pode lutar como mulher, vítima que foi da sequência covarde e cruel da justiça dos homens de sua época. Mas o seu lado feminino a fez trocar o trono papal pelo direito de amar a pessoa escolhida. Perdeu o trono e a própria vida para não perder a linha do direito de ser mulher, sem se negar o direito de ser mãe. Não havia nascido para a religião, nem para a igreja, nascera para ser mulher, amar e vivenciar a maternidade. Não obstante, a vida e a história a tenha levado a resultados diferentes, não pôde e nem quis negar sua condição feminina. Seu universo mulher.
Esse fio pode ser o fio (gume) das espadas dos soldados romanos que decapitaram as onze mil virgens que se recusaram a adorar deuses estrangeiros. Pode ser o fio da navalha que cortou o pescoço de Santa Helena, por não aceitar trair seu amor (seu marido) com o hóspede que, depois de ser tão bem recebido, abusou da hospitalidade. É, também, o fio de som deixado no ar pelas flechas lançadas ao inimigo oriundas dos arcos velozes manuseados pelas africanas belas corajosas guerreiras lutando por liberdade, por sua tribo, sua família e sua dignidade. Assim como fez Dandara, Acotirene, Luiza Mahin, Tereza de Benguela, Aqualtune, Anastácia e tantas outras... E tantas outras...
Este fio não é material, pelo menos neste parágrafo. É um fio metafórico que representa a quase infinita corrente de tantos clitóris cortados, nas longínquas aldeias e mesmo em cidades grandes dos países representantes do grande islã. É a linha do preconceito e que costurou a vagina de Warie Dirie, a Flor do deserto, como bem denunciou a famosa modelo somalesa, hoje, embaixadora na ONU em defesa das mulheres nos países que ainda praticam a circuncisão (mutilação) feminina. Ela que, quando criança, foi mutilada aos 3 anos e fugiu da tenda paterna para não se casar aos 11 e ser a quarta mulher de um comerciante de tapetes.
Do lado material, é o fio que costurou os lábios vaginais de tantas meninas numa prática milenar, machista, retrógada, arcaica, violenta, cruel e covarde, numa tentativa de destruir algo que a natureza criou tão magnificamente e legitimar um machismo cultural estrutural e histórico. É a navalha afiada usada por uma anciã para cometer tamanho crime contra a natureza, contra o gênero feminino e contra toda humanidade. É também o fio da lâmina de gilete ou navalha que o noivo recebe no dia do casamento para, na noite de núpcia, abrir o caminho que a natureza já havia construído aberto e a ignorância o fechou.
Esse fio mais uma vez é um som. Ele é o grito silencioso das meninas que foram brutalmente abusadas, estupradas, seviciadas. É um grito preso na garganta daquelas que não tiveram coragem, tempo e como denunciar. É o grito das índias americanas violentadas pelo colonizador cujo sangue mancha as páginas abertas da história e dos estandartes do novo mudo. É o grito das moças violadas nas senzalas e nos corredores das casas grandes pelos patrões e descendentes, como os livros têm mostrado. São as procissões a caminho dos cemitérios para assistir aos enterros de tantas mulheres assassinadas, no Brasil, vítimas do feminicídio, doença cultural incurável em um país que ostenta o quinto lugar entre os mais violento do mundo em morte de mulheres.
É um risco no caderno como um sonho de quem quer aprender e não pode, porque tem este direito negado apenas por ser mulher e viver em uma região em que elas não têm acesso à escola. É o sangue escorrendo no rosto de Malala Youzafzai onde o tiro a acertou. Ela, aos 16 anos, enfrentou o Talibã, na luta pelo direito à educação das meninas em seu país, principalmente, no local em que ela nasceu. Decidiu lutar pela garantia ao conhecimento e salvaguardá-las da ignorância, sem medo e sem pensar no que poderia acontecer e, dessa forma, arriscou a própria vida por não aceitar tamanha desumanidade cometida ao gênero feminino. Não foi só questionar um sistema político, mas, sim, enfrentar um conjunto de tradições presentes, há séculos, em uma sociedade que exige obediência radical aos princípios religiosos emanados do estado teológico. Foi colocar-se frente ao extremismo do governo talibã.
Esse fio de cabelo é o que sobrou de Benazir Bhutto, depois de ser alvejada no pescoço e ter seu carro explodido. Benazir, filha de Zulfikar Ali Bhutto que governou o Paquistão e foi morto enforcado pelos seus adversários militares, foi, por duas vezes, primeira ministra do país. Ela herdou o governo e os problemas. No pouco tempo em que governou, iniciou um processo de abertura levando em conta os direitos das mulheres, principalmente, os que diziam respeito à educação. A abertura não foi vista com bons olhos como não seria em uma sociedade onde as mulheres não têm direito a não ser o de obedecer. E o mais triste é que este poder masculino é legitimado pelas próprias mulheres. E, assim, ela foi morta pelos extremistas conservadores pertencentes ao Grupo Al-Qaeda do Afeganistão.
Quando Malala foi discursar na ONU, ela recebeu a visita do viúvo e dos filhos de Benazir. Eles a entregaram o xale branco que ela usava no dia do atentado e, nele, estava preso um fio de cabelo dela, o que sobrou após a explosão. Malala recebeu o xale e discursou usando-o, fazendo dele o fio da consciência da luta pelos direitos femininos. Esse fio de cabelo representa algo que as mulheres devem pensar, refletir e discutir: a união entre elas, pelos direitos delas, conhecido como sororidade. As mulheres precisam entender que é necessário lutar juntas e não esperar que o os homens façam por elas. Muitas já entenderam isso, mas ainda constitui uma pequena parcela, principalmente, nos países em que, além da consciência, é preciso muita coragem e, às vezes, colocar a vida em perigo, como Malala, ou até perder e ser exemplo, como Benazir.
É preciso denunciar as crueldades como fez Waris Dirie. As mulheres que tem poder no mundo, mesmo sendo poucas, precisam-se unir com as que possuem menos ou nenhum. O empoderamento feminino vai muito além da liberdade sexual, da luta por emprego, por salário. É a batalha pelo direito de nascer, viver e existir e ser mulher sem risco. É a luta universal que ultrapassa as fronteiras políticas, as barreiras linguísticas, as diferenças de cor, os princípios religiosos, os credos, as culturas, os costumes, os sons, os odores, as dores e os sabores. É a luta das mulheres.
O trecho do lindo e profundo discurso de Malala na ONU poderia ser uma oração: as mulheres precisam ser fortes. Não devem ter medo, elas não estão cometendo nenhum crime. Elas estão apenas lutando pelo direito à educação, por saúde, por direito iguais, por liberdade, por um mundo melhor, por uma humanidade mais justa, sem violência, sem crueldade, sem feminicídio e, sobretudo, uma humanidade (se permitem o pleonasmo) mais humana com as mulheres.
As meninas e o fio de cabelo é tudo o que foi escrito, mas é também o fio da esperança que este mundo seja mais justo e menos violento. É fio da esperança de um mundo melhor em que as mulheres tenham os direitos equalizados e respeitados e possam nascer, crescer e viver livres com dignidade, amar e ser feliz plenamente, sem conviver com o medo de serem mutiladas e mortas, simplesmente, pelo fato de ser mulher. Um mundo que conviva harmonicamente com as diferenças e saiba amar àquelas que, além de ser iguais aos homens, são responsáveis por gerar a vida e dar continuidade à história da humanidade, que, ainda, precisa muito aprender a ser humana.
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Falar o que do texto. É tudo aquilo que queria e quero falar. Além da intertextualidade, uma volta na história, temas antigos e prazerosos de ler e ouvir. E deles, "As Mil e Uma Noites"
As mulheres ainda têm muito o que fazer para serem felizes e não serem tão violentamente agredidas, diminuídas de seus direitos, vistas como seres frágeis pelos homens e ter que submeter ao machismo. Mas, elas precisam se unirem e fazer aquilo que o papa falou ( se não me engane) João Paulo II. "O mundo ainda é mundo por causa das mulheres."
Vamos nessa mulheres! Um farol está indo à frente: há mulher polícia, há mulher piloto de avião, há mulher na política, há mulher…
O fio resistente da história das mulheres ao longo da saga humana, representado por um frágil fio de cabelo. No entanto, os fios de cabelo perdem a sua fragilidade quando unidos em tranças, como sinal de resistência. Isso me lembra o que o sábio disse nos Eclesiastes: "Um cordão de três dobras não se rompe com facilidade.". E a saga feminina, de luta e resistência, não seria a mesma se não fosse a união, a sororidade entre esses seres divinamente fantásticos!
Que texto maravilhoso,França,sobre o mundo desbravador das mulheres,aqui representadas por tantas guerreiras,ao longo da narrativa. Um texto sensível,profundo, compassivo...
Gratidão por esse texto encantador sobre o Sagrado Feminino.
Namastê!