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VOZES SILENCIADAS NAS LÁGRIMAS E NAS SAUDADES.

  • Foto do escritor: JOSÉ FRANÇA
    JOSÉ FRANÇA
  • 20 de jun.
  • 7 min de leitura

Atualizado: 18 de jul.

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Eu me despertei para adolescência ouvindo músicas que, até hoje, estão presentes em meu cérebro e guardadas nas mais recônditas gavetas da memória e, sentimentalmente, no meu coração. Deixei a infância ao som de Elis Regina, Clara Nunes e Rita Lee (nome que eu achava estranho por causa da famosa calça LEE, sonho de consumo da maioria dos adolescentes de minha geração.) Eu era apaixonado pelas músicas “O Mestre Sala dos Mares”, “Conto de Areia” e “Ovelha Negra”. Na época, eu não tinha o conhecimento da crítica política presente na primeira, nem as frases substituídas para aprovação da censura e nem que era da autoria de João Bosco e Aldir Blanc, como também, o apelo sensual-erótico da segunda e o grito de revolta contra os padrões instituídos da terceira.


Sempre ao sábado, meu pai, cansado da semana de trabalho árduo, chegava da feira trazendo uma garrafa de cachaça, para o descanso. Geralmente, dormia cedo e o rádio que funcionava à pilha ficava sem uso, mas também, as duplas sertanejas (que ele ouvia todas as noites na Rádio Nacional de São Paulo) as que se apresentavam aos sábados, ele não gostava. E, assim, eu pedia para minha mãe:


 ―“Posso ligar o rádio, mãe”

― “Pode, mas deixa o volume baixo para não acordar seu pai”


E em um desses sábados eu conheci Elis, Clara e Rita. Isso continuou até que, aos quatorze anos, eu comprei um rádio Sônia usado, do meu irmão mais velho, com o dinheiro arrecadado da venda de sete alqueires de milho da colheita da minha própria roça.


Na primeira vez que ouvi “Ovelha Negra” foi amor à primeira vista. (O pleonasmo é intencional). Eu me identifiquei logo com a música porque a melodia, ora suave, ora agressiva, embalava minha solidão adolescente no invólucro de carinho e proteção. E, também, por sofrer muito bullying dentro da própria família eu me considerava uma “ovelha negra”. 


Eu não era  entendido pelos meus colegas de faixa etária por causa do conhecimento evoluído para minha idade e para o espaço em que vivíamos e, por isso, em plena fase teen, eu experimentava a vida em um universo de deslocamento. E, no isolamento (que eu amava), os versos da canção se repetiam até eu me adormecer entre livros, revistas e pôsteres. “Você é ovelha negra da família, está na hora de você assumir e sumir”.


Não sei se muitos rapazes acordaram para o desejo masculino em relação à mulher com estes versos de Clara “Um dia morena enfeitada de rosas e rendas, abriu seu sorriso de moça e pediu para dançar”. Um dia eu peguei um ônibus e fui até Salvador para conhecer a Praia de Amaralina para ver as águas que, na música, “eram gotas de luar”. Não fiquei decepcionado com a beleza das águas, mas, sim, com a praia. Não era tão linda como eu idealizei; cheia de pedras e com uma aparência lúgubre à noite. Mas todas as lágrimas de emoção que pingaram, que rolaram por minhas pálpebras ao estar no espaço aclamado pelos meus sonhos viraram um oceano de lágrimas no dia em que ouvi a triste notícia que Clara Nunes havia morrido. Já não era mais água, eram lágrimas no mar, na areia, na maré cheia dos meus olhos e nas ondas do meu coração. Não eram mais gotas, era um tsuname de tristeza nos mares da minha longínqua adolescência. A maravilhosa voz silenciara... Eu sofri o luto da orfandade.


O mesmo mar onde o Almirante Negro aprendeu a arte da navegação e desenvolveu a consciência de classe, de luta pelos direitos, de resistência e superação, foi o mesmo mar que assistiu à Revolta da Chibata que construiu um monumento com “as pedras pisadas do cais”, aumentou o volume de suas ondas quando alguma onda sonora revelou a triste certeza que a voz de Elis calara para sempre.

 

Isolado no meu mundo, invadido pela nostalgia, preenchido pela tristeza eu vi meu universo sofrer uma avalanche de águas salgadas. De novo não era água. Eram alegrias mortas caídas dos galhos da saudade. E como ficaria minhas noites de sábado? Eu não mais ouviria Elis cantando “Salve o navegante negro, que tem por monumento as pedras pisadas do cais”. Estava mais uma vez órfão. Havia perdido mais uma vez e a voz da musa que embalou meus sonhos juvenis emudecera...


Lembro-me, hoje, o dia feliz em que cheguei à Rodoviária de Belo horizonte para tomar o  antigo ônibus da Viação Cometa e enfrentei a Rodovia Fernão Dias, até hoje a tão temida 381, e desembarquei em São Paulo para conhecer a terra da minha terceira diva: Sampa. E, aqui, parodiando o famoso cantor Caetano Veloso, para mim ainda não existia São Paulo de Rita. Foi com imensa ternura que caminhei pela Vila Mariana, alimentando meu cérebro com a fantasia de que Rita Lee, na adolescência, andara por aquelas ruas matutando questões existenciais que perpassaram seu cérebro para depois jogar na cara de seus familiares e da sociedade em forma de protesto e rompimento com valores e tabus estabelecidos. 


Para meu alívio, esta voz não se calou na juventude, gritou por várias gerações, que “os ovelhas negras” também merecem um lugar no mundo, e quando não têm este lugar, eles lutam por ele, ou até mesmo constroem na consciência inquieta um mundo ideal. Há pouco tempo essa voz  também se despediu. Mas agora não é mais orfandade, é viuvez.


E quando eu vivia a noite de um sábado e dormia meu sono e acordava meus sonhos embalados por estas canções, a natureza promoveu uma mudança radical em minha vida. Era o dia 22 de setembro, segundo dia da primavera que se apresentava com uma chuva fina e persistente que caíra durante a madrugada e legou à manhã o cheiro inconfundível de terra molhada. Eu acordei bem cedo para brincar com os meus irmãos mais novos com o objetivo de aproveitar o domingo. Meu pai, como de costume, acordou cedo e ligou o rádio. E não foi uma música que chegou aos meus ouvidos: foi um comercial do jornal O Globo que iniciava uma  edição no primeiro dia da semana. “Acorda que o sol vem nascendo. É o Globo edição de domingo.”. A melodia do reclame atravessou o meu eu adolescente e um arrepio tomou conta de todo meu ser, unindo o corpo e a alma, o sul e norte, num abraço duradouro que perenizou na efemeridade da minha existência.

 

Quando eu saí de casa, antes mesmo do café da manhã, o tempo já não era o mesmo, o lugar já não era o mesmo. Eu já não era o mesmo. Estava enxergando tudo diferente. Parecia que os pontos cardeais estavam trocados. Não conseguia identificar o lado do nascente e do pôr do sol. Estava vivendo um mundo novo e distante. Caminhei seguindo os meus irmãos, mas não via mais sentido nenhum naquelas brincadeiras. Eu não mais me encaixava em mim. Algo havia rompido dentro do meu ser. Por que meus irmãos não entendiam a minha falta de vontade de brincar, eu os acompanhei sentindo-me um estranho no ninho. 


De volta para o almoço, as pernas  da minha calça estavam cobertas de sementes de capim-carrapicho, capim beiço-de-boi e carrapicho agulha e outras da mesma natureza. Ao chegar em casa, encontrei várias amigas, colegas de escola, todas da minha idade, conversando com a minha mãe. Eu, com a minha calça repleta de sementes, quando as vi, fiquei extremamente envergonhado. Muitas coisas haviam mudado, eu já não era eu, eu era um  novo ser. Eu já não mais me encontrava em mim.


Muito tempo depois, eu entendi que houve naquele dia. Aconteceu o meu ritual de passagem. Naquela manhã de primavera, eu deixava para trás a criança que existiu em mim e recebi o rapaz, o jovem que veio para enfrentar a maturidade até dar lugar à velhice, talvez esta lógica sequencial seja a essência Bendita da Existência. E à tarde daquele domingo, meu pai, de novo, ligou o rádio antes de começar o futebol e uma voz cantava melodiosa e triste. Era a voz da Vanusa (que, aliás, nunca foi minha diva) como se fosse a minha infância que cantava dizendo adeus “para sempre”. Fiquei órfão mais uma vez. Órfão da minha infância.


Fui eu que se fechou no muro e se guardou lá fora / Fui eu que num esforço se guardou na indiferença / Fui eu que numa tarde se fez tarde de tristezas /Fui eu que consegui ficar e ir embora”. E a voz da criança silenciava em mim. 


Naquele domingo, a casa da infância foi derrubada pela juventude, como a casa dos Três Porquinhos, pelo Lobo Mau, ficou, porém, uma pequena janela que, de vez em quando, abre-se para um pequeno porão que serve de  abrigo para a saudade. Como bem disse a música da Vanusa: “Fui eu que consegui ficar e ir embora”. E mesmo, anos depois, quando ouço Conto de Areia, O Mestre-Sala dos Mares e Ovelha Negra, penso: será que todos os homens do mundo conseguiram perceber este momento mágico do ritual de passagem da criança para o jovem? Ritual que não é físico, é de alma. Que não corre para fora, corre para dentro. Entra pelos poros e provoca arrepios, passa pelo coração e estimula as emoções, vai ao cérebro e desenvolve a libido, chega à alma e se transforma em nostalgia profunda.  


Enquanto o conjunto de tudo isso produz uma disritmia em meu cérebro e suscita um olhar retrô, eu vejo a árvore que nasceu e cresceu no porão abandonado da puerícia e sinto suas folhas caindo a cada nota de Elis, Clara e Rita, deixando-a com um aspecto sinistro de desolamento e um aroma desagradável de solidão crônica. Eu me identifico nela como pertencimento, pois suas raízes habitam a vastidão do meu devir e a reconheço como a árvore das lágrimas e das saudades. 





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6 comentários

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04 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Muito interessante a sua escrita! Uma retrospectiva da sua vida representada pelas músicas que a embalaram. Para mim serviu também de memória. Bem vindo ao Bendita, França. Carla Kirilos

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Convidado:
10 de jul.
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Obrigado, Carla. Valeu.

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Convidado:
20 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Que lindo, França!

“Eu não era  entendido pelos meus colegas de faixa etária por causa do conhecimento evoluído para minha idade e para o espaço em que vivíamos e, por isso, em plena fase teen, eu experimentava a vida em um universo de deslocamento.”

Você me fez recordar o tempo em que eu olhava para o meu espaço social e pensava: acho que minha alma é muito velha!”

Muito cedo, tive que buscar na literatura o meu espaço para viver, embora nunca tenha sofrido bullying.

Namastê!

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Convidado:
29 de jun.
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Obrigado, Beth.

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Jefferson Lima
Jefferson Lima
20 de jun.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Trilha sonora do amadurecimento de um menino interiorano se tornando um jovem desbravador das cidades. É interessante como as canções nos marcam e pontuam as etapas do nosso estradar. Parabéns pelo texto, José França! Feliz estreia!

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Convidado:
29 de jun.
Respondendo a

Obrigado, Jefferson.

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