LIXEIROS
- MARIA ANÉSIA

- 21 de out.
- 3 min de leitura

Uma adolescente e sua mãe passeavam pelas ruas da cidade. Sutilmente, entrava pelas janelas do veículo um sopro suave de brisa vespertina. E o divertimento das duas tinha nada mais do que um sabor de paraíso. Ora debaixo do verde das árvores, ora debaixo de viadutos, dos lados esquerdo e direito das avenidas, nas bases de prédios altíssimos, ao redor das bordas de praças como a Raul Soares.
O carro de Tiana rodava paralelamente a outros automóveis, tanto brilho e maciez que provocavam nos motoristas vizinhos muita admiração. Elas exibiam um sorriso cordial.
Nas calçadas, uma gentalha a pé, veloz e trombando uns aos outros. Era a máquina trabalhadora voltando do batente. Tiana e Valéria acenavam, civilidade e delicadeza. Muitos deles retribuíam com gestos de carinho. Com as mãos presas em um volante, ainda com cheiro de fábrica, Tiana dirigia agradecida pelas ruas nobres, outras nem tanto. Era a vida que gostaria de ter.
Valéria ao seu lado ia consumindo energia - o combustível humano de melhor qualidade, o calor de adolescente. O hábito de observar tudo ao seu redor era de nascença. Razão de um prazer constante e que a deixava feliz. Seus olhos não se cansavam de ver - enxergar além das belezas antigas em competição com as modernas, os detalhes por ali enriquecendo tais obras-primas.
- Enxergar também atitudes devastadoras dos distraídos do século XXI. E logo viu um indivíduo jogando lixo na rua. Um cara de boa aparência. Não deu outra, Valéria era assim, tinha bom senso.
- Olhe isso, mamãe. Um lixeiro sem a menor consciência de que a rua é o segmento das casas, onde transitam vidas. Ambiente de valor.
Não demora, uma criança descasca uma banana e atira a casca na rua.
- Mamãe, que horror, que falta de educação! E a mãe do lado dela! Veja quantas lixeiras vazias, não aguento.
- Mamãe, que isso? Não gosto de lixeiros.
E seus olhos continuavam na ativa. Atrás da banca de jornal, um homem mijando na maior cara de pau. Um rio de xixi correndo pela rua e exalando um fedor de esgoto nas narinas dos passantes.
- Mamãe, isso é imperdoável! Não gosto de lixeiros.
Tiana, então, põe mais fogo na fala de Valéria.
- Canta pra eles, Valéria, aquela musiquinha que aprendi na escola.
Parou o carro, a menina saltou lá fora e não é que cantou mesmo.
“Se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar…”“Se esta rua, se esta rua fosse minha, lixeiro era punido e aprendia a limpar.
A garota tinha muitos talentos.
Ó, e declamou também.
“Uma rua chora estarrecida. E diz: Faço parte de sua vida
Não me cubra de lixo, alma perdida.”
Entrou novamente no carro, a mamãe acelerou. Sensacional. Mãe e filha degustando um momento especial - cordialidade de sangues iguais. Amor em ação.
Não foram muito longe e Valéria agora teve que explodir de indignação. E gritou:
- Ô lixeiro, não se coloca lixo na lixeira fora das sacolas. Colabore com os lixeiros. Sabe quem são eles? Homens que trabalham correndo atrás de uma caçamba, deixando a cidade limpa. Às vezes, perdem até suas dignidades e respeito porque é um trabalho sem valor na sociedade. Mas, o que encontrou para manter o alimento da família. São homens sujos de caráter limpo.
E Tiana reforçou os dizeres de Valéria.
- Você viu Valéria, aquela crueldade que fizeram com aquele gari. Um ricão autoritário o matou, após uma discussão no trânsito. Maldito. Digo que não há inferno porque se existir, esse indivíduo já entrou lá vivo. O gari tinha quarenta e quatro anos. Doeu, doeu na família dele e de todos que compreendem que lixeiro é quem joga lixo nas ruas, o outro é digno de respeito. Homem do bem. E lixo solto nas lixeiras vai parar nas ruas. Coitadas…
O passeio rematou na porta da casa das duas amigas do peito, mãe e filha. Liga emocional feita no ventre materno. Quando o feto está gerando na barriga da mãe, ele doa suas células para a mamãe e recebe as dela de volta por meio do cordão umbilical. É deslumbrante esse ato de amor divino na fertilidade, imortal após o desligamento para a vida dos dois - mãe jamais esquece filhos e vice-versa. Cada um tem uma célula de luz para não cair no esquecimento.
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Como é gostoso observar o caminho e voltar para casa cheio de reflexões sobre o que vamos encontrando…
Namastê!