CORPOS EM CLOSE, ALMAS SEM FOCO
- JEFFERSON LIMA
- 8 de ago.
- 3 min de leitura
Quem me lê já deve ter percebido: minha escrita nasce, na maioria das vezes, de incômodos. Isso vale tanto para os textos poéticos, quanto para os contos ficcionais.
Minha entrada no Bendita marcou também meu cambalear pelas veredas das crônicas. Descobri, com alegria, que esse é um caminho perfeito para desopilar algumas tensões existenciais.
Hoje, quero registrar um incômodo que envolve a transformação do comportamento humano entre duas datas: 17 de agosto de 2014 e 25 de julho de 2025 — exatos 10 anos, 11 meses e 8 dias.

Na primeira dessas datas, a imprensa nacional destacava, em seus editoriais, o velório de Eduardo Campos, então candidato à Presidência da República, morto num acidente aéreo quatro dias antes. Um novo fenômeno chamava a atenção: uma mulher anônima, ao passar diante do caixão, pegou o celular e fez um autorretrato. (Smartphones e selfies, vale lembrar, ainda não eram termos populares.)
Na edição daquele dia, o jornal O Globo trouxe uma entrevista com o psicólogo Alexandre Mosso, que afirmou ser difícil avaliar esse tipo de comportamento:
“O luto é pessoal. Cada pessoa o enfrenta de forma diferente e não se pode julgar isso. O que não pode acontecer é a invasão do luto do outro por qualquer motivo.”
Sobre o autorretrato feito ao lado do caixão de Campos — duramente criticado nas redes sociais —, Mosso comentou:
“Não posso avaliar as motivações dessa pessoa especificamente. Mas o que ocorre hoje é quase um egoísmo. As pessoas esquecem que uma atitude delas pode ser malvista por aqueles que estão em luto naquele momento.”
Avancemos para 25 de julho de 2025, data do velório da artista e empresária Preta Gil, filha do ícone da MPB Gilberto Gil. Quase onze anos após o episódio no velório de Campos, fãs e curiosos que passavam diante do corpo de Preta não apenas tiravam selfies — também gravavam vídeos da cena.
Mais chocante ainda: esse comportamento parece, hoje, normalizado. Uma década depois, a imprensa sequer se deu ao trabalho de discutir o fenômeno. Apenas alguns colunistas, que ainda preservam algum senso de civilidade e respeito, abordaram o tema.
A coluna de Lu Lacerda, na Veja Rio, de 25 de julho, destacou:
“Preta Gil é o nome mais comentado desta sexta (25/07). No entanto, no velório aberto ao público, no Theatro Municipal, para uma verdadeira multidão, que está ali desde às seis da manhã, muita gente tem reparado um comportamento, digamos, antiempático: alguns ‘fãs’ com seus celulares em riste, na hora de passar pelo corpo da cantora.”
A colunista conversou com o psiquiatra Arnaldo Chuster sobre esse tipo de conduta:
“A princípio, existe uma curiosidade mórbida que não tem nenhuma conexão com o luto pela perda de uma pessoa considerada icônica. Todavia, a questão pode ser mais complicada, pois a curiosidade mórbida pode se associar à arrogância e à estupidez.”
E como se não bastassem os celulares, alguns canais do YouTube fizeram cobertura ao vivo, destacando os rostos dos famosos e reagindo a comentários de internautas — uma verdadeira espetacularização da dor alheia.
E aqui me pergunto: quando foi que nos desumanizamos?
Em que momento transformamos o sofrimento do outro em espetáculo?
Por que tantas pessoas enfrentam longas filas para passar diante do corpo de alguém que não fazia parte do seu círculo íntimo — apenas porque era uma figura pública — e ainda produzem conteúdo para as redes sociais, como se aquilo fosse um privilégio?
Em 2016, indignado ao ver pessoas fotografando um acidente com vítima fatal numa avenida movimentada de Belo Horizonte, escrevi os seguintes versos:
“Se passando por aí
perceber meu corpo ali no chão
por favor, não faça uma foto.
Use o smartphone duas vezes:
Chame o socorro e
avise à minha família.”
Sei que os tempos mudaram e reconheço o quanto o acesso às novas tecnologias transformou os hábitos das pessoas. No entanto, ainda me indigno com certos comportamentos humanos.
É admirável como os artistas conseguem divulgar sua arte sem depender de estruturas dispendiosas, como editoras, gravadoras ou agências. É grande o número de pessoas que, por meio da publicidade — seja para grandes marcas ou para empreendedores regionais —, conseguem monetizar uma página nas redes sociais e fazer disso uma fonte de renda.
Mas é preciso haver um limite ético para o uso dessas plataformas. Talvez seja um tema a ser abordado nas escolas, nas conversas informais em família e até mesmo pelos influenciadores que ainda preservam o bom senso.
Quando pensarmos em fazer uma foto ou gravar um vídeo, que sejamos capazes de nos fazer uma pergunta simples: eu gostaria de ser a pessoa que está do outro lado da câmera?
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Hoje, tive um tempinho e me dediquei ao Blog Bendita Existência. E gostaria de ter muito mais para responder às duas perguntas de seu texto, Jefferson. Há tempos venho observando o ser humano e ainda confirmo que não tem nada de humano. E sorrir, gostar, debochar, e fazer espetáculo da dor do outro, creio que foi após o surgimento das redes sociais. Um espaço de todo mundo e muita liberdade para falar o que bem quer. Enquanto não houver uma lei dura que cobre das redes: respeito, limites, e mesmo penas para aqueles mais violentos, continuemos a ver gente brincar com a dor alheia. Alexandre de Moraes até está nessa linha, mas parece que não vai ser fácil para ele.…
Como é bom conhecer o lado cronista do poeta/contista que tanto admiro. Sua escrita necessária deflagra o quanto o infortúnio alheio parece ser mais interessante que as vitórias. O texto ganha maior significado quando alcança minha vivência e me faz lembrar da atitude da minha mãe diante da morte de Leila Diniz, um ícone da liberdade sexual feminina nos idos de 1970 que, infelizmente, morreu aos 27 anos, em um desastre aéreo, vindo da Austrália, onde foi realizar o sonho de ver cangurus. A comoção foi geral. D. Edith estava com uma guia de internação nas mãos para fazer uma cirurgia. Só fez uso do documento, após enfrentar uma fila quilométrica por horas, no velório da atriz. Se em 197…
Não pertencemos mais ao mundo silencioso das despedidas derradeiras, não no mundo onde tudo se transformou em mercadoria.
Namastê!
Ainda bem que temos escritores como você,sensível ,civilizado e de bom senso,para fazer com quem essa reflexão,ou quem sabe ,a mudança de comportamento aconteça ,para aqueles a quem falta! Acho uma estupidez a falta de empatia com a dor alheia!
Parabéns Jefferson pela pertinente reflexão!❤️
Ótima reflexão! Texto profundo sobre o luto e as consequências de um comportamento se ética . Parabéns Jefferson.