Dia da Criança pelo paradigma da desconstrução histórica
- JOSÉ FRANÇA

- 16 de out.
- 6 min de leitura

“Criança feliz, feliz a cantar, alegre a embalar seu sonho infantil...” (autor desconhecido)
No Dia da Criança, enquanto balões coloridos enfeitam praças e sorrisos infantis ecoam pelos parques e jardins, as escolas realizam diversas ações com brincadeiras, fantasias, festinhas e merendas especiais — tudo isso para celebrar o dia dos pequenos. Rodoviárias, portos e aeroportos ficam abarrotados; as estradas, repletas de veículos; e as praias, superlotadas — especialmente aquelas localizadas em regiões de clima mais quente no mês de outubro. Isso sem falar dos cinemas, sem lugar para mais ninguém, com sessões especiais de filmes infantis e desenhos animados que dominam os cartazes da semana do dia 12, acompanhados do cheirinho de pipoca que invade os quarteirões. Restaurantes e estacionamentos ficam lotados, tudo para alegrar a garotada. Tudo isso é necessário, é importante, porque as crianças precisam de brincadeiras, diversão, afeto e carinho para crescerem saudáveis e se tornarem adultos equilibrados. Mas por trás dessa realidade bonita, há um silêncio que grita.
Um silêncio que vem das florestas, onde centenas, milhares de crianças indígenas morreram de fome sob a negligência de um Estado que deveria protegê-las. Muitas morreram de gripe, tuberculose, pneumonia — por falta de vacinas, analgésicos, antibióticos. Outras morreram de desnutrição grave, porque os alimentos não chegaram às aldeias, resultado do desmonte de políticas públicas entre 2017 e 2022. Mais que negligência, foi covardia: verbas destinadas às aldeias foram desviadas para igrejas evangélicas, com o objetivo de obter apoio político de pastores e seus fiéis. Um exemplo de atrocidade pós-moderna e crime contra a humanidade.
Há, também, o silêncio das mãos calejadas de crianças exploradas pelo trabalho infantil, trocando lápis por enxadas, sonhos por sobrevivência. Mãos que deveriam estar brincando com pião, jogando bolas de gude, empinando pipas, aprendendo instrumentos, jogando queimada e tantas outras brincadeiras infantis, estão carregando madeira, quebrando pedras, descascando frutas, plantando sementes e mudas. As consequências do trabalho precoce — antes dos 13 anos — comprometem o desenvolvimento físico, psíquico, social e intelectual de meninas e meninos obrigados a trabalhar em pedreiras, carvoarias, feiras livres, matadouros, plantações, lixões ou mesmo em atividades aparentemente menos prejudiciais, como oficinas de costura caseiras, serralherias e marcenarias. Em geral, o trabalho infantil ilícito exclui direitos básicos: educação, cultura, lazer, saúde, moradia e alimentação adequada.
Há o silêncio das crianças de Gaza, cujos olhos já viram mais bombas do que brinquedos, mais luto do que afeto. A escalada das hostilidades na Faixa de Gaza tem causado um impacto catastrófico nas crianças palestinas. Meninas e meninos morrem em ritmo alarmante. Desde o início dos ataques, cerca de 66 mil pessoas foram mortas e milhares ficaram feridas — um terço dessas vítimas eram crianças, aproximadamente 18 mil. Mesmo aquelas que não foram atingidas pelos bombardeios estão sem água, comida e remédios. Muitas perderam suas casas e famílias. Como pensar em Dia da Criança para quem não tem o que comer, ou seja, falta o insumo básico da vida: a alimentação?
Há o silêncio das vítimas de estupro, cujos corpos foram violados e cujas vozes são silenciadas pela vergonha, pelo medo, pela impunidade. A denúncia é difícil: primeiro, porque a vítima é criança; segundo, porque o autor da violência, na maioria das vezes, é alguém da família ou próximo a ela. Sofrem violência dentro do invólucro criado para protegê-las — o lar. Perdem o direito de ser criança, são feridas em sua dignidade, vulneráveis e incapazes de se defender. E no Dia da Criança, dia de presentes e alegria, muitas estão sofrendo as marcas de uma infância negada, cujas consequências se manifestam na adolescência.
Neste mês das crianças, é preciso lembrar também daquelas que, sozinhas ou acompanhadas dos pais, fugiram de seus países por medo da guerra, da miséria, da fome ou da violência. Não se pode esquecer do silêncio das crianças refugiadas da África, que cruzam serras, desertos e mares em busca de um lar, de uma pátria, ou mesmo de uma família — mas encontram fronteiras fechadas e olhares indiferentes. Outras fogem ilegalmente tentando chegar à Europa, que aos olhos delas é uma terra que não jorra leite e mel, mas pode salvá-las das tragédias que vivem. Porém, de tragédia em tragédia, centenas morrem todos os anos na travessia do mar, tingindo de vermelho as águas do Mediterrâneo — de sangue e de vergonha para os governantes e para toda a humanidade.
Em meio aos gritos infantis, há o silêncio das crianças que sofrem maus-tratos dentro de suas próprias casas, onde o lar deveria ser abrigo, proteção e conforto. Mas se torna prisão, onde a infância é negada. Crianças que sofrem castigos físicos — queimaduras, socos, pontapés — e muitas vezes chegam mortas aos hospitais. Crianças cujo único “erro” foi nascer, pagando por crimes que não cometeram, vítimas de relacionamentos fracassados, escolhas erradas, falta de preparo para a maternidade e paternidade. São alvos de adultos frustrados, encarcerados em seus próprios traumas. E, se me permitem o paradoxo: anjos que não têm asas para voar, mas que, em muitos casos, voam para o além.
Não se pode esquecer do silêncio das vítimas do tráfico internacional de crianças raptadas, sequestradas, iludidas e vendidas como mercadoria, privadas de identidade, infância e dignidade. O número global de crianças vítimas detectadas subiu de 31% em 2019 para 38% em 2022 entre meninas. O tráfico infantil também cresce em países de alta renda, muitas vezes envolvendo meninas para serem exploradas sexualmente. Mas não é só isso: aumenta também o número de meninos. Muitos são usados em trabalhos análogos à escravidão, crimes cibernéticos, tráfico de drogas e mendicância. A maioria das vítimas vem de regiões marcadas por seca, fome e guerra — condições que revelam a extrema vulnerabilidade infantil.
“Crianças com alegria, qual um bando de andorinhas
Viram Jesus que dizia: vinde a mim as criancinhas.”
(Autor desconhecido)
O que está escrito não são lendas, como o flautista de Hamelin, que mistura realidade e fantasia e até hoje é discutido como possível rapto de crianças para colonizar a Europa. Nem o silêncio das crianças hebraicas jogadas no rio Nilo — um infanticídio histórico, alegoria ou realidade, que denuncia a crueldade atemporal contra os mais vulneráveis. Talvez o sábio egípcio quisesse mostrar a brutalidade do sistema de escravidão e as relações desumanas entre dominadores e dominados. Ao longo dos séculos, milhares de crianças foram esquecidas pela história, como se suas vidas não tivessem valor.
O infanticídio é a fase inicial do genocídio — a exterminação de um povo. A história recente cita Gaza, mas também há crianças judaicas mortas e sequestradas pelo grupo terrorista Hamas, que iniciou o conflito. Criança é criança em todos os povos, lugares, cores, credos e religiões. A infância é universal. Todo adulto já foi criança, e toda criança, se deixada viver, será adulta também. De infanticídio em infanticídio, convém lembrar os meninos assassinados por Herodes — símbolo cruel de um poder que se sente ameaçado pelo choro de um recém-nascido.
E, ainda, hoje, em pleno século XXI, há o silêncio dos pequenos que morrem de fome todos os dias — não por falta de comida no mundo, mas por falta de justiça e excesso de ganância. Um caso que virou símbolo internacional foi o da menina iemenita Amal Hussain, de 7 anos, cuja foto em um hospital em novembro de 2018 chamou atenção mundial para a crise humanitária no Iêmen. Ela sofria de desnutrição severa e morreu perto de um centro de refugiados. “Estima-se que quase 180 milhões de crianças sofrem de pobreza alimentar severa e cerca de 38 milhões menores de cinco anos enfrentam desnutrição aguda grave em crises nutricionais ao redor do planeta.”
Jesus Cristo já foi criança. “Hoje no céu um aceno, os anjos dizem amém, porque Jesus Nazareno foi criancinha também” (autor desconhecido). Assim como Buda, Platão, Leonardo da Vinci, Karl Marx — como também todos os infanticidas do nosso tempo e de épocas passadas.
Neste Dia da Criança, que o nosso presente não seja apenas brinquedos, mas consciência. Que a celebração venha acompanhada de compromisso. Porque enquanto houver uma criança sofrendo violência ou passando fome, nenhuma está verdadeiramente segura. Que possamos ouvir esses silêncios e transformá-los em ação, em políticas, em empatia. Porque toda criança tem o direito de brincar, sonhar e viver — e esse direito não pode ser privilégio de poucos, mas garantia de todos.
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Estamos vivendo a Era Apocalíptica!Aquela em que os vivos invejariam os mortos.
Namastê!
Sabia observação. O Estado brasileiro e muitos pais investem pouco na infância acreditando que ela vai se desenvolver na fase adulta. Este é um grande erro, pois os traumas da infância se perpétua por décadas e décadas ou por toda vida. O professor França, sempre com um olhar atento, não deixou escapar a oportunidade de conscientizar as pessoas. Parabéns!
Não sei quem mais sofre nesse planeta, se crianças ou adultos. É assustador. Meu recado é curto porque o contrário é uma imensidão de coisas erradas, de valores perdidos, de uma educação falida. Estou certa, não sei. O pior está aí, criança deixa de ser criança e vira adulto sem saber o que está fazendo. Presencio criança de três aninhos que xinga a mãe dele e grita na tora. É inteligência, assim diz a mãe. Digo, é um mundo de cabeça para baixo. Gente morrendo de medo de gente. A ferramenta digital se tornou o amigo nº um. Ser individual, viver a sós é conforto.
França,
Que texto potente e perturbador! Embora tudo que aponte não nos seja desconhecido, faz-nos refletir sobre as agruras que a infância tem sofrido ao longo dos séculos.
Parabéns pelo texto!
Abraço,
Ilma Pereira
Infelizmente, ser uma criança-feliz ainda é um privilégio de poucas. Parabéns por este texto-denúncia, tão necessário para trazer às consciências, de forma tão visceral, a dura realidade dos nossos dias - desde outros tempos.