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UM OLHAR ROMANTIZADO SOBRE A OBRA LINDA DO ROSÁRIO DE ADRIANA VAREJÃO

  • Foto do escritor: JOSÉ FRANÇA
    JOSÉ FRANÇA
  • 5 de set.
  • 6 min de leitura

Na minha segunda crônica para o blog Bendita Existência, na Coluna Surpresas Belas do Cotidiano, eu escrevi sobre o dia dos namorados estereotipado pelos interesses comerciais, agora eu escrevo algumas linhas para fazer uma leitura romântica de uma das mais emblemáticas obras da arte contemporânea, presente na cidade de Brumadinho, no Instituto Inhotim. Trata-se da obra Linda do Rosário de Adriana Varejão. 


O amor que, na linguagem romântica, é  eternizado em tantos momentos, tantas formas e em tantos espaços, mas o que diria alguém que tivesse seu combo amor-sexo-prazer com suas vísceras derramadas ao longo de paredes de azulejos brancos comuns em galerias, tendo ao lado uma imensidão verde, num dos mais belos conjuntos paisagísticos do planeta que decora o maior museu a céu aberto do mundo?

 

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O ano era 2002, bem na hora do almoço, quando o edifício Linda do Rosário, na Rua do Rosário, no centro do Rio, desabou. Até aí, parece que não há nada de mistério, pois prédios já caíram em outros lugares do mundo, a qualquer hora do dia e da noite. Mas o que inquieta e incomoda, como disse o escritor e poeta Jefferson Lima que só escreve aquilo que o incomoda, eu, um pouco diferente, escrevo quando a beleza presente no acontecimento me toca. E a beleza desse acontecimento me tocou profundamente. 


Mas qual seria a beleza no evento de um edifício desabar bem na hora do almoço? No evento, nada, mas no mistério que perdura neste acontecimento, sim. Uns 20 minutos, antes do prédio cair, houve um estalo muito forte. Então, foi anunciado o esvaziamento do prédio. Em poucos minutos não havia mais ninguém no edifício e este podia cair em paz, sem fazer vítimas. Mas, assim, decepcionaria as dezenas de olhares curiosos e os tabloides sensacionalistas que ainda eram comuns na época. Mas o casal do apartamento 501 não saiu. Mesmo depois do recepcionista bater na porta e avisar os hóspedes, eles se recusaram a deixar as dependências do prédio. Foram encontrados quatro dias depois, com as vísceras espalhadas pelos escombros.


Ele, um professor de 71 anos. Ela, uma vendedora de seguros de 48. Aí que se traduz o mistério acampado nos refolhos da beleza. Por que não ouviram o estalo? Ou ouviram e se recusaram a sair? Será que ouviram? Por que ignoraram as batidas na porta? Será que ouviram as batidas? Será que tudo isto foi para não revelar  o mistério que os envolvia? De acordo com o que foi apurado pela investigação e pela revelação do porteiro, há possíveis indícios de que os dois eram amantes, pois ambos eram casados, ou seja, tinham uma vida conjugal. E, ainda, segundo o mesmo profissional, os dois eram clientes assíduos, sempre vistos, ali, na hora do almoço.


Analisando por este viés, pode ter sido uma opção ficar e manter para sempre no oculto o tipo de relação. O amor proibido, ilícito. Talvez fosse algo tão pequeno que ninguém precisasse ficar sabendo, ou grande demais que os terceiros não dessem conta de entender. Quem sabe, belo demais para ser revelado aos olhos da multidão. Ou, talvez, a melhor opção, fosse não revelar o verdadeiro rosto da verdade e, assim, poupar outras pessoas da dor. Neste caso, a alternativa foi fugir das imagens e dos rostos assustados das pessoas que largaram o edifício e tiveram suas vidas salvas. Ou, ainda, permanecer no mistério aquilo que era somente deles e deixar todo resto na área do enigma e das possibilidades. 


Mas, será que era algo tão intenso, tão belo, capaz de ser mais forte que a morte? De que vale três batidinhas na porta quando um orgasmo desbravador está batendo na porta trazendo pedaços de céu para a terra, pedaços de infinitos para o que é finito, pedaços de divino para o que é humano, pedaços de eternos para o que é efêmero? O que é um estalo de vigas de um prédio velho quando as mais profundas estruturas do ser estão sendo diluídas, arrastadas pelas ondas de um prazer como um tsunami varrendo os mais longínquos recantos do corpo? De que vale um estalo de uma coluna de um prédio antigo quando um orgasmo jorra nas entranhas mais profundas e mais íntimas do humano como um coral de anjos cantando o mais doce hino?


Dois anos depois da tragédia, Adriana Varejão elabora a obra com o título homônimo, Linda do Rosário. Uma parede de azulejos brancos comuns, coberta por vísceras que assusta pela cor real da carne. É tão real que as narinas procuram cheiro de carne sem encontrar. A realidade é tão cruel que quem conhece a história, com a sensibilidade um pouco mais aguçada, procura por sobre os azulejos partes do corpo do casal. Todo realismo presente na obra concorre para que tudo seja retratado como o universo dos amantes que impuseram valoração menor ao corpo em detrimento ao sentimento que os unia e que o prazer fosse capaz de fazer a matéria abandonar o mundo e suas almas alçarem voo para o paraíso. 


A saída do Rio de Janeiro, espaço totalmente urbano, para subir as montanhas de Minas em direção a Inhotim pode ser vista como fuga da realidade, um escapismo na tentativa de  chegar ao Eden. É a leitura da ideia de subida como movimento de libertação. De acordo com professor Bernardo Buarque, “A história do desabamento gera controvérsia: teria o casal ignorado todo o prólogo do desabamento, sendo uma fatalidade potencialmente evitável, caso o porteiro insistisse em alertá-los, ou escolhido morrer ali mesmo, sem perspectiva futura? Afinal, a iminência do desabamento havia atraído a mídia e o professor, que seria relativamente conhecido e tinha esposa e família, teria a reputação arruinada, junto com o prédio a desabar. A morte, portanto, ao passo em que os conteria eternamente entre o antigo local de seus encontros, poderia também libertá-los de todas as outras obrigações. Suas carnes ficariam lá, eternamente incrustadas nos cacos da Linda do Rosário. Carnes na obra cuja sensação provocada alterna nojo e fascínio, humanização e distanciamento do ser ali em pedaços.”


Mas, continuando a análise literária da obra de Adriana, os azulejos brancos podem ser interpretados como um ambiente familiar e as piscinas ao lado como se fossem uma grande banheira e se referem à intimidade do casal, um banho, um momento de relaxamento, bem como a cozinha que poderia ser utilizada para os amantes aquecerem algum tipo de alimento, com o objetivo de restaurar as energias gastas durante os momentos de amor. Mas os azulejos também podem ser a sauna para uso da transpiração do casal e, aqui, cabe uma leitura romântica exagerada, o vapor calórico da sauna e a temperatura do desejo presentes nos corpos, liberaram a energia que derreteu as ferragens das colunas e causou o estalo e, possivelmente, o desabamento em livre alusão ao filme Rio, 40 graus.


Adriana Varejão ama Ouro Preto. Por isso criou os azulejos no azul que se refere aos anjos barrocos. Do casal ficou apenas suas vísceras cobrindo os azulejos de vermelho simbolizando as horas de puro erotismo sobre a áurea branca da pureza. Os anjos barrocos, porém, num coro celestial, unidos aos pássaros, obra em azulejos pequenos que fica no terraço da galeria, juntaram-se num coro nupcial e arrebataram   o casal e alçaram voo para os sete céus de cristal, morada da perfeição. E, assim, alcançaram o nível mais alto da pureza, chegaram ao Kamathom, a região dos puros prazeres, e quem atinge a esta etapa não precisam mais voltar. Como disse Camões, ‘Por tão grande amor tão curta vida”. E se o amor é tão grande e a vida é tão breve, ele precisa transcender a esfera física e continuar no espaço da transcendência.


Os azulejões azuis  podem ser interpretados como a onda do mar, ou as ondas do mar  que invadiram a Rua do Rosário balançando as estruturas do prédio, mas também pode ser lida como uma onda arrebatadora de prazer sentido e vivido pelos os dois e se explodiu em um orgasmo universal que, de tão forte, arrebentou os corpos e, por consequência, o prédio também. Não teria como o casal fugir, pois toda catástrofe foi resultante das condensações da energia do prazer gerada e emitida por eles mesmos.


Na entrada da galeria, o espelho d’água está presente elucidando a presença das plantas alucinógenas que pode ser explicitada como os comentários maldosos e das especulações da mídia e da imprensa,  mas por outro lado, o espelho d’água representa a pureza do amor que só eles conheciam. Os dois viviam um amor no invólucro brilhante da felicidade, mas quem duvida da liberdade de um casal de amantes, que mesmo preso em um espaço de quatro paredes, estavam livres das amarras sociais e dos padrões ditados pelos cânones da sociedade como se essa fosse dona legítima do sentimento do amor e do prazer? O que seria a pequenez da morte diante da grandiosidade de um amor de tamanha amplitude?


Seres que deixaram de ser vazios para ser completos, abandonaram a imperfeição para ser perfeitos e, nesta perfeição, eternizaram-se. Não quiseram interromper o momento de onze segundos em que experimentaram o céu e foram arrebatados como o profeta Elias, levado ao céu em um carro de fogo puxados por querubins e serafins, anjos e arcanjos, cantando o canto solene do Glória e Aleluia em versos sublimes de amor.


Como Dionísio elevando Ariadne com sua coroa de ouro e inserindo-a no Olimpo, morada dos deuses, numa constelação, plena de ternura e beleza.  E, lá, eles estarão vivos nas dobras empíreas da eternidade, no mais lindo dos espaços celestiais, o céu dos amantes. Pois, amantes não morrem, ficam presos no céu de eternos passarinhos. 






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3 comentários

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06 de set.
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Ao ler o texto do meu querido amigo José França, fiquei tomado por uma emoção que nem sei explicar direito. Ele conseguiu transformar uma tragédia em poesia, uma coisa visceral em celebração do amor, desse que passa por cima do tempo, do corpo e até da morte. A leitura que ele fez da obra Linda do Rosário é profunda, corajosa e linda, e me pegou de um jeito especial pela homenagem ao meu poema Aurora. Ver aquele verso meu, “pois crianças não morrem, ficam presos numa gaiola de eternos passarinhos”, ecoar na última linha como “amantes não morrem, ficam presos no céu de eternos passarinhos” foi de arrepiar. Um gesto que me honra e me emociona. Valeu demais, meu amigo!

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Convidado:
06 de set.
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França,que ironia do destino!De repente,o mundo inteiro descobre, debaixo de escombros,o segredo de um homem e uma mulher...Os nomes são revelados e as famílias tristemente envolvidas, porque o segredo que parecia soterrado,surgiu carregando inúmeras possibilidades de interpretação.Que loucura!

Lembrei do meu pai que sempre nos disse: "O escondido não existe!"

Se algo tem vida,um dia irá se manifestar! Que triste história de afetos e desafetos que ficou aberta entre as famílias que permanecem no mundo,colhendo os frutos plantados por esse casal e do casal que um dia acreditou numa relação que não podia ser revelada, mas podia ser protegida por eles.

Namastê!


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Jefferson Lima
Jefferson Lima
06 de set.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Este olhar romântico e poético sobre a tragédia carioca, perpassando pela arte de Adriana Varejão encravada nas montanhas mineiras, é de tirar o fôlego. Tem um quê de fofoca-filosófico-literária, com um toque machadiano, que me leva a nunca mais olhar a arte de Inhotim com o mesmo olhar. Parabéns pelo excelente texto, Professor!

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