O MERCADO DA VERDADE
- CARLA KIRILOS

- 14 de out.
- 3 min de leitura

(Ser autêntica dá trabalho — principalmente quando é para valer)
Pode parecer um absurdo, mas tem coisa mais cansativa do que tentar ser “de verdade” o tempo todo?
Vivemos cercados por mantras de autenticidade, promessas de equilíbrio e gurus da transparência emocional.
Enquanto isso, cada um de nós — com suas incoerências e dias ruins — tenta caber num ideal de sinceridade cuidadosamente montado.
Ser autêntico virou meta de performance. Hoje, por incrível que pareça, até a espontaneidade parece ensaiada.
E, curiosamente, quanto mais tentamos mostrar quem somos, mais nos afastamos do que realmente somos.
Talvez por isso o novo fetiche coletivo seja o detox emocional — essa espécie de faxina interna que promete eliminar ressentimentos, culpas e fragilidades, deixando a alma “leve e funcional”.
Mas o que acontece quando até o processo de se curar vira parte do show?
É sobre isso que vale a pena pensar — sobre o preço de viver num mundo onde até a verdade virou produto.
“Seja você mesma”, dizem os posts que aparecem entre uma propaganda de colágeno e outra de detox emocional.
A promessa é tentadora: limpe-se das impurezas sentimentais, expulse as toxinas emocionais e reencontre sua melhor versão.
O detox do corpo já não basta — agora é preciso higienizar também a alma.
A autenticidade virou a nova dieta da mente. Só que, quanto mais tentamos ser “de verdade”, mais artificiais parecemos.
Hoje, até o autoconhecimento tem trilha sonora, enquadramento e hashtag.
Ser natural dá trabalho — e costuma sair caro.
Tem curso de autenticidade, mentoria de vulnerabilidade e e-book de “cura interior em sete passos”.
A indústria do “eu verdadeiro” fatura bilhões com gente tentando se reencontrar — desde que o reencontro caiba num carrossel de stories.
O mais curioso é que essa “autenticidade” vem com manual de instruções:
você pode ser você mesma, desde que o feed esteja harmônico, o texto tenha emoção controlada e o desabafo não ofenda ninguém.
Autenticidade sim, mas com curadoria.
As redes sociais transformaram o bastidor em palco.
A espontaneidade tem roteiro, a vulnerabilidade tem cenário e a verdade — essa passa por filtro antes de ser postada.
Até o choro agora precisa de boa iluminação.
A dor também entrou no mercado da estética.
E quando a lágrima brilha sob a luz certa, vem o reconhecimento digital: corações, comentários, partilhas.
Mas o que era para ser catarse vira conteúdo.
É curioso como a cultura do “ser de verdade” nos deixa cada vez mais editados.
Entre filtros e legendas inspiradoras, vivemos numa espécie de spa emocional coletivo, onde ninguém pode parecer fora de centro.
A raiva, o cansaço, a dúvida — tudo precisa ser depurado, trabalhado, neutralizado.
Mas será que sentir menos nos torna mais autênticos — ou apenas mais anestesiados?
E é aqui que entra “Clarice”.
Aquela Clarice das redes, citada em verso e prosa, mesmo quando nunca escreveu metade do que lhe atribuem.
Ela virou selo de profundidade instantânea — uma forma de parecer profunda sem precisar mergulhar.
É o mesmo mecanismo da autenticidade performática: aparentar densidade é mais seguro do que encarar o próprio abismo.
Ser autêntica é bonito no discurso, mas arriscado na prática.
Porque ser autêntica é admitir contradições, mudar de ideia, sentir o que não deveria.
É assumir o caos — e o caos não rende engajamento.
A internet adora o erro superado, mas não o erro em processo.
Gosta do “antes e depois”, mas não do “durante”.
No fim, talvez a maior mentira seja achar que precisamos estar puras de nós mesmas para sermos verdadeiras.
A autenticidade real é imperfeita, cheia de ruídos e pequenas incoerências.
Ela não pede aplauso — pede espaço.
Mas o que acontece quando até o processo de se curar vira parte do show?
Quando a alma precisa de engajamento para continuar existindo?
Talvez o maior cansaço moderno venha daí: de tentar ser inteiro num mundo que paga por fragmentos.
E é nesse ponto que o versículo abaixo ecoa com força, cortando o ruído digital:
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.” (João 8:32)
A libertação, talvez, esteja menos em “limpar” sentimentos e mais em aceitá-los — com suas manchas, suas contradições, sua humanidade sem filtro.
Mas parece que trocamos a liberdade pela visibilidade.
Queremos ser vistas, não necessariamente ser conhecidas.
E assim, entre filtros e detoxes, seguimos tentando vender o que deveríamos apenas viver.
Ser inteira, hoje, talvez seja o maior ato de rebeldia possível.
Porque, num mundo obcecado por aparências emocionais, ser de verdade exige coragem — e um pouco de bagunça também.
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Feliz de quem tem coragem de ser autêntico em uma era em que a minoria se preocupa com verdades.
Você, Carla, como sempre, abrindo espaço neste Blog para nos fazer refletir sobre assuntos que pensamos mas pouco falamos. Parabéns! Sibele
Dentro de um mundo manipulador que nos oferece muitas e variadas opções, ser inteira pode ser não se enquadrar em nenhuma opção oferecida e ser capaz de enfrentar com coragem a escolha da nossa própria exclusão.
Namastê!
Só que, quanto mais tentamos ser “de verdade”, mais artificiais parecemos. É, não tem jeito. Está mesmo tudo adulterado. Que texto, Carla! 👏👏👏 Ana Luiza
Adorei o texto, Carla! A frase “ Ser autêntica dá trabalho — principalmente quando é para valer” é a mais pura expressão da verdade. 💋Júlia