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A ESCOVA

  • Foto do escritor: ILMA PEREIRA
    ILMA PEREIRA
  • 7 de out.
  • 2 min de leitura
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(1º de outubro: dia do Idoso. Homenagem ao meu pai, que me inspirou a contar esta e muitas outras histórias…)


Passei pelo banheiro do andar de baixo (um dos  muitos que havia na casa) e parei para admirar. Brilhava  nos cantos mais improváveis. Em cada cantinho poder-se-ia passar uma lupa que nem sequer um grão de sujeira  seria encontrado. Aliás, toda a casa era um brilho só! Era  meu primeiro dia como babá-preceptora dos dois filhos  do casal. Recebi o meu quarto –pasmem – teria minha  própria suíte! Eles eram bem de vida, não milionários,  mas podiam ter cozinheira, uma faxineira todos os dias  e uma babá: eu! 


Fui almoçar na cozinha enquanto esperava que  meus clientes voltassem da escolinha. Lá estavam a cozinheira e a faxineira. Gostei imediatamente da primeira, mas senti um calafrio quando estiquei minha mão  à faxineira. 


De pele macilenta e cabelos pretos bem  pintados, muito esbelta, só esticou sua mão quando eu  já pensava em retirar a minha. Percebi unhas perfeitas  – como conseguia? Mais tarde descobri serem de gel.  Era antipática por natureza a mulher. 


Conversamos  sobre amenidades até que não aguentei e perguntei  como era trabalhar ali. A cozinheira, Raimunda, sessentona, rechonchuda e bonachona, pele avermelhada,  cabelos curtos e grisalhos, deu de ombros e disse que  era normal, como qualquer casa: muito trabalho, sor rir e agradar em tudo os donos da casa. Chamou-me a  atenção para rir das piadas do patrão, isso o deixaria envaidecido e feliz.


Virei-me para Estela, a faxineira,  para saber sua opinião. Só então observei que estava  maquiada. Ela deu de ombros, sem se dar ao trabalho  de me responder. 


Anotei mentalmente o descaso e me preparei para  num melhor momento lhe dar o troco. Levantei-me e  despedi-me da Raimunda. Ela fez um gesto de puxar a pele  do olho para baixo – fica de olho! – na direção da Estela,  que se levantava toda sestrosa da mesa. Era muito elegante a faxineira. 


Segui para fora da cozinha e parei admirando a sala.  Quando me virei, quase trombo na faxineira, que me olhava com olhos estranhíssimos. E disse imperiosamente: 


– Vem cá! – E pôs um dedo na boca, pedindo silêncio. Segui-a, atônita com seu poder de mando, para o  segundo andar. Abriu a porta do quarto da patroa, que  não se encontrava, pois havia ido buscar as crianças na  escola. Levou-me até o banheiro, brilhava como ouro, e  me segredou: 


– Hoje a patroa me ignorou, nem sequer um bom  dia, nem uma bijuteria, um agrado. Ela esquece quem  limpa toda a casa, em especial, o banheiro! 


Eu comentei:

 

– Que, aliás, está brilhando! 


Ela sorriu, modesta, sem mostrar os dentes.


– Pois é, e sabe o que eu uso para ficar tão limpo? 


Puxou da gaveta um objeto e me mostrou triunfante.


– A escova de dentes da patroa! 


Recuei, sentindo a bílis vir à minha boca, e anotei  mentalmente lugares para esconder a minha escova!


PEREIRA, Ilma. O afilhado do capeta e outros contos. Ed. Lesto, 2020.


@ilmapenumo

@totalmenteliterarias





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11 comentários

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Joseani Vieira
07 de dez.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Jesus! Fiquei com medo agora rsrs

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Maria Anésia
13 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Ai que nojo, Ilma. Mas, você sabia, igual ou pior, não sei porque o sujeito é ruim mesmo ou vingança, é cuspir no shop antes de serví-lo às madames. Detesto comer fora de casa. Por mais deliciosa que a comida seja, não sei por onde passou antes de chegar na mesa. Amo narrativas, histórias...

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Convidado:
09 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Mto bom!

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Maria Pupa
08 de out.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Ótimo texto! Com reviravolta e um convite a reflexão: “o que é justo” o dente por dente, olho por olho⁉️


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Convidado:
08 de out.

Ilma, o climax do seu conto é surpreendente! (Aliás, como da maioria dos que eu já li.) Você é mestre em escrever contos curtos, belos, engraçados e com um pitada de sarcasmo. Amei. Parabéns!


José França

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Ilma Pereira
08 de out.
Respondendo a

José França,

Fico muito lisonjeada com seu comentário. Grande abraço.

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