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Quatro mulheres. Quatro personagens: vilãs ou protagonistas?

  • Foto do escritor: JOSÉ FRANÇA
    JOSÉ FRANÇA
  • há 4 dias
  • 8 min de leitura

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Esta crônica literária foi inspirada e escrita como tentativa de realizar uma leitura comparativa entre Emma Bovary (a Madame Bovary), Anna Karenina, Luísa, personagem de O Primo Basílio, e Capitu, personagem de Dom Casmurro. O texto terá um tom reflexivo, crítico e narrativo, como pede o gênero crônica, mas com densidade suficiente para se aproximar de um ensaio literário, ainda que superficial.


Por outro lado, pretendo apresentar uma linha de pensamento que suscita centenas de questionamentos: Gustave Flaubert, Leon Tolstói, Eça de Queirós e Machado de Assis, ao criarem mulheres consideradas “traidoras”, estavam transformando-as em mulheres fortes ou apenas mostrando que, no realismo, só havia anti-heróis ao construírem personagens masculinas fracas, vítimas dessas mulheres?


Na literatura, certas personagens femininas parecem carregar o peso de séculos de inquietações humanas. Emma Bovary, Anna Karenina, Luísa e Capitu não são apenas mulheres de ficção: são espelhos de desejos, frustrações e contradições que atravessam culturas e épocas. Cada uma delas, à sua maneira, encarna o conflito entre o íntimo e o social, entre a paixão e a moral, entre o sonho e a realidade. Este fato contrasta com as características de seus parceiros: de cada um deles emana fraqueza, frouxidão, imbecilidade, idiotice e caráter vacilante.


Emma Bovary, criada por Gustave Flaubert, é a provinciana que sonha com os salões parisienses e com amores arrebatadores. Sua vida, marcada pela monotonia conjugal, transforma-se em busca incessante por experiências que nunca se sustentam. Anna Karenina, por sua vez, é a aristocrata russa que desafia convenções ao entregar-se a um amor proibido, mas acaba esmagada pelo peso da sociedade e pela própria culpa. Luísa, de O Primo Basílio, é a burguesa lisboeta que se deixa seduzir pela promessa de romance, mas vê sua vida ruir diante da chantagem e da hipocrisia social. Capitu, enigmática criação de Machado de Assis, não se entrega em confissões explícitas: ela é antes o mistério, a dúvida, a mulher que permanece suspensa entre a inocência e a suspeita — “o olhar de cigana oblíqua e dissimulada”.


Os parceiros destas mulheres não conseguem acompanhar a profundidade dos desejos, das paixões e das intenções delas. Emma Bovary não quer apenas os salões parisienses. Ela quer muito mais do que ser rica: deseja ser amada, ser desejada. Seu marido só se ocupa da medicina. Concentrado na profissão e nos inúmeros frascos, potes e bisturis, não percebe que, por baixo dos belos vestidos, há um corpo de mulher sedento de amor, louco por prazer, que dia e noite pulsa na ânsia de luxúria e erotismo.


Na esteira das mulheres mal-amadas está a jovem e bela Anna Karenina. Casada com Alexei Alexandrovich Karenin, um alto funcionário do governo russo, mais velho, frio como o inverno e preocupado apenas com sua posição social e deveres, Anna deseja amor e paixão com todas as forças do corpo e da alma. Eles vivem um casamento de conveniência: ele representa a sociedade conservadora, forjada nas tradições e obrigações de um patriarcado decadente. Enquanto o marido se afunda nos livros de leis e passa horas nos tribunais, ocultando a presença da esposa nos eventos sociais, Anna sonha com um romance ardoroso e encontra esse desejo nos braços do Conde Vronsky.


Com Luísa não foi diferente. Esposa de Jorge, um engenheiro da burguesia lisboeta que só pensa em viagens e em construir pontes, ela é tratada como um bibelô que enfeita a casa. Jorge trai a esposa com outras mulheres durante suas ausências. O casamento, marcado pelo tédio e pela idealização romântica, torna-se apático pela falta de atenção do marido, levando Luísa à solidão e à busca por emoção. Jorge é frio, calculista, pensa que a mulher é um logaritmo; Luísa, ao contrário, é sonhadora, jovem, deseja viver. A rotina da casa e a ausência do marido matam sua alegria. Ela quer sentir-se realizada como mulher, capaz de ter prazer e ser feliz — algo impossível ao lado de Jorge, mas possível na cama com Basílio.


Já com Capitu é diferente. O narrador não revela muita coisa da intimidade dela, nem confirma sua suposta traição, mantendo-a envolta em mistério e transformando-a numa figura enigmática, complexa, enredada e indecifrável. Bentinho não nasceu para casar: nasceu para o sacerdócio. Capitu, ao contrário das outras que foram escolhidas pelos maridos, escolheu Bentinho e, para isso, aproximou-se de Dona Glória. O sonho de Capitu era o status, uma vez que suas origens eram humildes, e viu no mancebo a chance de ascender a uma classe superior. Com esse objetivo, lutou e venceu. Roubou Bentinho da mãe, da promessa da igreja e de Escobar. O narrador não a apresenta como uma mulher voluptuosa que sofresse por falta de prazer, mas o seu suposto caso com Escobar sugere isso, e a cama dele talvez fosse mais libidinosa que o santo leito conjugal, numa paródia do final de Senhora, de José de Alencar.


O que une essas quatro figuras? O desejo de ir além do lugar em que a sociedade do século XIX as colocou. Mas não um desejo simples: é o desejo como força que desestabiliza, que rompe a ordem estabelecida. Emma deseja escapar da mediocridade que a acompanhou desde a infância e que piorou em seu casamento; Anna deseja viver um amor absoluto, não ser apenas um livro de lei nas mãos do marido; Luísa deseja experimentar a aventura romântica, sonhar, amar e ter prazer; Capitu, talvez, deseja pouco mais que existir em sua própria complexidade, sem se deixar aprisionar pela narrativa de Bentinho.


Todas elas enfrentam o julgamento social. Emma é ridicularizada e condenada; Anna é excluída e destruída; Luísa é vítima da moral hipócrita da sociedade; Capitu é julgada eternamente pelo olhar ciumento de seu marido. A sociedade, nesses romances, funciona como tribunal implacável, onde a mulher que ousa desejar é sempre culpada. Surge, então, a pergunta: a literatura do século XIX está defendendo essas mulheres como vítimas de uma sociedade machista, misógina e patriarcal, criticando os homens, ou, ao contrário, coloca-as como falsas, desleais, traiçoeiras, infiéis, farsantes, hipócritas, enganadoras, impostoras, mentirosas, pérfidas e ardilosas, fazendo dos homens as vítimas?


Mas há diferenças cruciais. Há ensaístas literários que defendem Emma e Luísa, afirmando que são personagens que se deixam levar por ilusões românticas, quase como leitoras ingênuas de folhetins da época. Mas aqui, nesta crônica, elas não são vistas por um viés simplista: ambas tentam preencher lacunas de casamentos fracassados pelas posturas machistas dos maridos, que lhes legaram ausência, solidão e indiferença. Anna, ao contrário, vive uma paixão real, intensa, que a consome — também motivada pela conduta do marido. Capitu, por fim, não é vítima de sua própria ilusão, mas da interpretação alheia: sua história é contada por Bentinho, e é nesse olhar enviesado que se constrói sua suposta culpa.


O destino dessas personagens revela muito sobre o lugar da mulher na literatura e na sociedade de seus tempos. Emma e Anna terminam tragicamente, ambas suicidas, como se a única saída para quem desafia a ordem fosse a morte. Luísa é vítima de uma doença que se agrava após o sofrimento e humilhação causados pela chantagem da criada Juliana e pelo desfecho de seu caso com Basílio, morrendo sem ter sido amada verdadeiramente por ele, apesar da culpa e do remorso. Capitu sobrevive ao casamento, mas é condenada a viver sob a sombra da dúvida, exilada da narrativa que a aprisiona, morrendo distante da família e do país.


Há, portanto, uma gradação: da morte física à morte social, da destruição íntima ao apagamento simbólico. Todas, de algum modo, são punidas por desejar. A literatura, nesse sentido, não apenas reflete a realidade patriarcal, mas também a reforça: mostra que a mulher que ousa sair do papel esperado será castigada. Contudo, há também resistência. Emma, mesmo em sua ingenuidade, recusa-se a aceitar a monotonia. Anna desafia a aristocracia russa. Luísa, ainda que frágil, busca viver algo além do cotidiano doméstico. Capitu, silenciosa, resiste ao olhar acusador, permanecendo como enigma que desafia leitores até hoje. A punição não apaga a força dessas personagens; ao contrário, eterniza-as.


Ao compararmos Emma, Anna, Luísa e Capitu, percebemos que não estamos apenas diante de quatro mulheres, mas de quatro modos de narrar o desejo feminino. Flaubert, Tolstói, Eça e Machado, cada um à sua maneira, revelam o incômodo que a mulher desejante provoca. A sociedade não estava preparada para aceitar mulheres que pensam e agem como sujeitos de suas próprias ações. Elas fogem ou recusam permanecer nos estereótipos criados. Não aceitam o que é, aspiram ao novo, ao diferente. O desejo feminino é visto como ameaça à ordem conjugal, social e moral. Mas é justamente essa ameaça que torna essas personagens inesquecíveis.


Se a crônica é o espaço da reflexão cotidiana, aqui ela se torna também memorial: lembrar dessas mulheres é lembrar que o desejo não cabe em moldes estreitos. Emma, Anna, Luísa e Capitu continuam a nos interpelar porque, em suas histórias, reconhecemos não apenas o passado, mas também dilemas ainda presentes. Essas quatro mulheres fogem do dilema “procrustiano”: não aceitam a forma que a sociedade criou para encaixá-las. O julgamento social, a hipocrisia, a dúvida, a culpa — tudo isso ainda ressoa nos dias atuais.


Observando as qualidades dos maridos delas, percebe-se com facilidade que eles não eram homens para elas. O médico Bovary era medíocre, simples, sem imaginação, tedioso, que, apesar de médico, carecia de inteligência, visão ampla e ambição profissional. Alexei era um advogado metódico, medroso, rancoroso, frio, racional, preocupado mais com a carreira que com a família, incapaz de amar, um covarde. Jorge era um engenheiro burguês, trabalhador, sistemático, representando o ideal de marido estável, mas pouco compreensivo. Bentinho era um frouxo, um fantoche nas mãos de Capitu, narrador não confiável, introspectivo, inseguro, dominado por um ciúme doentio, revelando-se fraco, frio e vingativo.


As mulheres mostram a eles que são fortes. Todas morrem, mas morrem com dignidade. Antes de morrer, atestaram a incapacidade, a improficiência, a inépcia, a ignorância e o despreparo dos maridos para lidar com elas e com a vida. Madame Bovary se envenena com arsênico, definha e morre lentamente, sem dar ao marido o prazer de salvá-la — ele que era médico. Anna se suicida ao se lançar sob o trem, escancarando a covardia do marido que, ao saber da traição, recuou com medo de enfrentar Vronsky em duelo. Não o fez por pura covardia: acomodou-se na condição de marido traído.

Luísa deixa seu leito luxuoso, mas sem amor, e vai deitar-se com o primo Basílio no moinho, em meio ao pó e ao cheiro de milho, para acalmar seus desejos não realizados de mulher sedenta por prazer. Com a doença, vê o marido gastar grande parte da fortuna para salvá-la, sem conseguir. Ela morre após tanto esforço. Capitu também morre. Esta, sim, jogou na cara do marido que ele era um mau caráter, ao chorar alucinada ao lado do caixão de Escobar, para que Bentinho entendesse qual era o seu verdadeiro amor. Preferiu morrer isolada, na solidão de um país frio — logo ela que gostava de viver para a família e para o calor do Rio de Janeiro. Mas deixou para Bentinho a maldita dúvida: se foi traído ou não, se Ezequiel era filho dele ou de Escobar. Confirmou, assim, a incompetência do marido.


E talvez seja esse o poder da literatura: dar voz, mesmo que trágica ou enigmática, a quem ousa desejar. Emma, Anna, Luísa e Capitu não são apenas personagens; são símbolos de uma luta que atravessa séculos. E nós, leitores, seguimos condenados a refletir sobre elas, como quem olha para um espelho que nunca deixa de devolver nossa própria imagem — numa voz reflexiva, social, perene e duradoura.







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4 comentários

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Ilma
há 2 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

França,

Estasmulheres, mesmo que por mãos de escritores masculinos, mostram ao mundo o que as mulheres desejam. Mostram queo casamento, feito para aprisioná-las, não as prendeu.E mostram também que o macho está decadente há séculos, porque sempre viram as mulheres como um ser inferior, criado para servi-lo apenas.

Seu texto nos traz uma profunda reflexão sobre o papel das mulheres ontem e hoje. As 4 protagonistas em questão morreram de forma trágica ou triste, por não terem saída. Hoje as mulheres conseguiram avançar em direitos, não podem dizer não a um relacionamento que são mortas.

Urge que família, escola, sociedade oriente melhor os homens para que vejam as mulheres como seres de desejos e vontades que vão muito além de…

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Jefferson Lima
Jefferson Lima
há 3 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Professor, seja qual for a intenção dos escritores - pois cada qual imerso em sua cultura local, pode ter tido distintas motivações para a narrativa - suas respectivas histórias acabaram por cumprir um importante papel em sua época: escancarar o fato de que as mulheres também possuem desejos e são capazes de agir, independentemente da vontade e das limitações impostas pelos homens. Ainda há um caminho a percorrer nesse sentido. Essas personagens se lançaram a uma ação individual, sofrendo as consequências de tal "atrevimento" por irem contra o status quo. Atualmente, as mulheres ainda sofrem a imposição dos rótulos, no entanto se organizam e lutam, coletivamente, por direitos e representatividade. Porém é triste constatar que, em resposta, homens reagem com…

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Convidado:
há 3 dias
Respondendo a

É importante como que uma reflexão leva à outra, ou a outras. A enorme onda de violência contra a mulher que assistimos na atualidade intertextualizando com obras universais da literatura, através do olhar do seu olhar, mostra como é necessária a leitura de épocas passadas para entendermos o momento em que vivemos. Obrigado, Jefferson Lima.

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Convidado:
há 4 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

França, não sei se essa literatura do Século XIX está defendendo as mulheres, mas o que vejo é como essa literatura, redigida por homens, consegue revelar uma sociedade machista, misógina e patriarcal que fere mulheres, quando elas ousam se manifestar contra os padrões estabelecidos por uma sociedade que continua, em pleno século XXI,

atravessando a vida das mulheres, deliberadamente.

Namastê!


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