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A PEDRA COMO REVELAÇÃO: Drummond, Dostoiévski e os Ecos do Absurdo

  • Foto do escritor: JOSÉ FRANÇA
    JOSÉ FRANÇA
  • 12 de nov
  • 6 min de leitura

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A proposta desta crônica é fazer uma análise comparativa da imagem da pedra na obra Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, e no poema “No Meio do Caminho”, de Carlos Drummond de Andrade. Como o texto do autor russo é cerca de 60 anos mais antigo que o do poeta mineiro, surge a pergunta: teria Carlos Drummond lido a fantástica e universal obra de Dostoiévski? A resposta é quase um sim. A obra do itabirano revela que ele era um grande leitor, como se nota nas intertextualidades presentes em suas poesias. A pedra, em Dostoiévski e Drummond, é mais que obstáculo: é revelação. Ambos a usam como símbolo do enfrentamento da existência, da dor e da consciência.


Antes de prosseguir com a comparação, é necessário analisar algumas passagens em que a pedra se apresenta como obstáculo, em outras obras. Comecemos pela mitologia. A pedra foi usada para fazer o machado com que Cronos castrou Urano (o céu, seu pai), a pedido da Terra, que precisava freá-lo, já que ele engolia todos os filhos que ela dava à luz. Castrado, Urano não voltou mais, contribuindo para o senso comum de que o céu está no alto e todas as figuras celestiais são assexuadas — como procriar, se Urano é estéril?


Outra passagem mitológica envolve o próprio Cronos, que, ao vencer seu pai, tornou-se senhor do tempo. Casou-se com sua irmã Reia e começou também a engolir os filhos. Quando nasceu Júpiter, Reia o escondeu e enrolou uma pedra em folhas, entregando-a a Cronos como se fosse o bebê. Três dias depois, a pedra ainda não havia sido digerida. Isso revela a durabilidade da pedra: esteve no estômago do tempo e não se corrompeu. Ao perceber a traição, Cronos vomitou a pedra e os outros filhos que havia engolido. Também aqui, a pedra é obstáculo no caminho de alguém.


O mito de Sísifo é central na obra filosófica moderna O Mito de Sísifo, de Albert Camus. Neste ensaio, Camus usa a história como metáfora da condição humana e da filosofia do absurdo. Sísifo foi castigado por Hades por sua astúcia e desobediência — enganou a morte (Tânatos) duas vezes e traiu a confiança dos deuses. Como punição eterna, foi condenado a rolar uma pedra enorme montanha acima, apenas para vê-la rolar de volta quando faltava pouco para o topo, repetindo o processo incessantemente.


A pedra também aparece na primeira tentação de Cristo. O Diabo desafiou Jesus, que jejuava há 40 dias, a transformar as pedras do deserto em pão. Jesus recusou, afirmando: “Nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus.” Não só no caminho de Drummond havia uma pedra — no de Cristo também. A tradição cristã identifica o local como o Monte Quarentena (ou Monte da Tentação), uma montanha árida com cavernas, perto de Jericó, na Cisjordânia. Hoje, esse local é uma pedra no caminho da paz mundial.


No meio do caminho tinha uma pedra. Tinha uma pedra no meio do caminho. Carlos Drummond de Andrade repete esse verso como quem insiste em lembrar que o mundo não é plano, nem fácil, nem livre de tropeços. Já Dostoiévski, em Os Irmãos Karamazov, não nomeia a pedra com a mesma literalidade, mas ela está lá — no peso da culpa, na dúvida de Ivan, na fé de Aliocha, na violência de Dmitri. A pedra, em ambos, é aquilo que não se pode ignorar. É a pedra que ensina. Como dizer que há dores que não se superam — apenas se atravessam!? A pedra é tropeço, mas também testemunha. E revela que o caminho nunca é liso, nunca é só paisagem.


A “pedra no meio do caminho”, célebre verso de Carlos Drummond de Andrade, transcende sua literalidade para se tornar símbolo dos obstáculos inevitáveis da vida. A possível pedra real que inspirou o poema teria sido uma lembrança concreta — talvez uma rocha vista repetidamente em suas caminhadas por Minas Gerais, o início da mineração em Itabira destruindo a montanha diante de seus olhos, ou o curso de Farmácia que ele concluiu, mas nunca exerceu. No entanto, o que realmente importa é sua carga simbólica. Ela representa os entraves que marcam nossa trajetória: momentos de dor, dúvida ou frustração que, como a pedra, não podem ser ignorados. Drummond transforma esse elemento banal em uma metáfora universal da condição humana, revelando que, mais do que o caminho, é a pedra que permanece na memória.


Drummond vê a pedra como marco desta memória. “Nunca me esquecerei desse acontecimento”, diz ele, como quem sabe que há dores que não se apagam, apenas se acomodam. A pedra é trauma, obstáculo, ponto fixo que molda o caminho. Em Dostoiévski, a pedra é mais filosófica: é o sofrimento que leva à redenção, o crime que exige julgamento, o amor que se prova no sacrifício. É o peso da existência que cada irmão carrega, mesmo sem saber. Em Os Irmãos Karamázov, as pedras não estão no chão, mas na alma.


Cada personagem carrega sua pedra — e não há como seguir sem encará-la. Os autores, cada um à sua maneira, dizem que viver é encontrar pedras. Não há caminho sem elas. Mas enquanto Drummond convida à contemplação poética, Dostoiévski obriga ao enfrentamento com angústia e fé. A pedra de Drummond é estática, contemplativa, quase lírica. A de Dostoiévski é dinâmica, viva, pulsante, cheia de consequências — mas transformadora.


O itabirano oferece a pedra como lembrança, como marca que o tempo não apaga. Já o russo mostra que a pedra é momento de escolha: diante dela, pode-se negar, fugir ou encará-la e usá-la como exemplo de transformação. Para ambos, a rocha é inevitável. Mas enquanto o poeta a perscruta com lirismo e condescendência, o romancista a transforma em dilema moral.

E talvez seja isso que os une: a pedra como ponto de virada. Ela não é só obstáculo — é revelação. É o momento em que o caminho deixa de ser apenas trajeto e se torna experiência. A pedra nos ensina, nos marca, nos muda. Seja na poesia ou na prosa, ela está lá para lembrar que o caminho nunca é só caminho. É sempre escolha, dor, beleza. E muitas vezes, a escolha é difícil, dolorosa como a pedra do machado que castrou Urano, dura nas entranhas de Cronos, pesada como no mito de Sísifo e perigosa como no evangelho de Cristo.


Outra intertextualidade possível é o poema de João Cabral de Melo Neto, A Educação pela Pedra. Nesta poesia, a pedra não é tropeço nem trauma, como em Drummond, nem dilema moral, como em Dostoiévski. Ela é método. Professora severa, ensina pela dureza, pela secura, pela resistência ao que é fluido. A pedra, para Cabral, é o oposto da emoção derramada: é forma exata, matéria bruta que exige disciplina. Metáfora da própria poesia cabralina: seca, precisa, antirromântica.


Enquanto Drummond se deixa afetar pela pedra e Dostoiévski mergulha no drama que ela provoca, Cabral a observa com distanciamento quase científico. A pedra é o que não cede, o que exige esforço para ser compreendido — “para quem soletrá-la”, como ele diz. Há uma dimensão geográfica e social, aqui, também: a pedra do Sertão, que aparece na segunda parte do poema, forma o povo. Ela educa “de dentro para fora”, moldando o homem nordestino pela aridez, pela escassez, pela luta diária. É pedagogia da sobrevivência. É a pedagogia da bendita existência.


Portanto, a pedra é símbolo do absurdo. Como em Camus e o mito de Sísifo, empurrar a pedra montanha acima é o destino do homem consciente. Em Dostoiévski, Ivan se rebela contra Deus e contra o sofrimento das crianças — sua pedra é a recusa do mundo como ele é. Em Drummond, a pedra é menos metafísica, mas igualmente definitiva.


Talvez, por isso, a pedra nos fascine tanto. Porque ela interrompe, exige pausa, obriga a pensar. Ela nos tira do automático. Nos força a olhar para dentro. A pedra é o que nos humaniza. No fim, a pedra não é só obstáculo. É revelação. É o que transforma o caminho em experiência. É o que ensina que viver não é seguir em linha reta — é tropeçar, cair, levantar. E lembrar que é necessário seguir em frente.





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14 comentários

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Maria Anésia
há 7 dias
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

França, seu texto gerou comentários lindos. Parabéns...

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Maria Anésia
8 de dez
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Oi França, amei sua crônica. Como foi prazeroso fazer uma leitura assim. E mostra que você lê muito e escreve com muita clareza. A apologia da pedra no discurso do russo e do brasileiro ficou sensacional. Uma aula. Penso também assim, O Drummond não usou a pedra como obstáculo e sim como uma simbologia lírica, resistente e que oferece inúmeras interpretações. É muito belo: "Tinha uma pedra no caminho" Portanto, pare e pense:

  • Para onde vou, é esse caminho mesmo? Essa pedra pode não ser a rocha, o cascalho e sim uma luz, um pensamento positivo, sólido capaz de fazer transformação.

  • E olha que riqueza da pedra. Lirismo para um e dilema moral para o outro. É um ensinamento que…

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Joseani Vieira
7 de dez
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Gostei muito do seu texto — aprendi sobre pedras na mitologia além da de Sísifo, o que me encantou. Já a pedra do Drummond não mexe tanto comigo… talvez porque encontrei tantas no meu próprio caminho que a poesia dele me soa quase óbvia.

Queria te perguntar: você já leu A mulher que escreveu a Bíblia do Moacyr Scliar?

Há uma pedra ali que não se parece com nenhuma das que você mencionou — e que chama a atenção sobre a utilidade que lhe foi atribuída.


Obrigada por essa leitura tão rica. Admirada com sua capacidade de ampliar olhares.

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Convidado:
1 de dez
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

As articulações que você tece no seu texto são admiráveis. Parabéns! Mas eu pensei mesmo sobre isso:

"Talvez, por isso, a pedra nos fascine tanto. Porque ela interrompe, exige pausa, obriga a pensar."

Por quê? Porque é assim exatamente que vejo as pedras. Como oportunidade para pensar, articular e dar a volta para transpor e superar. Valeu! Carla Kirilos

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Beto Nicou
Beto Nicou
22 de nov
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

França, li seu texto com muito interesse. Você articula de forma admirável as diferentes tradições, mitologia, Bíblia, Dostoiévski, Drummond e João Cabral, sem perder clareza nem profundidade (e eu, claro, não esperava menos). A maneira como você desenvolve a ideia da pedra como símbolo que atravessa tempos e vozes é precisa, rica e muito bem conduzida. É um texto que ensina enquanto conversa, que ilumina sem ser pesado. Fiquei realmente impressionado com a fluidez das conexões e com a força das suas leituras. Meus parabéns , nobre amigo!

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Convidado:
22 de nov
Respondendo a

Muito obrigado, meu nobre. Você foi muito elogioso em sua análise e uma crítica positiva vinda do autor de Moeki me faz acreditar que o meu texto tem qualidade. Fiquei imensamente feliz com a sua leitura e com o comentário. Um grande abraço.

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