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UMA CENA EM BARCELONA

  • Foto do escritor: BETH BRETAS
    BETH BRETAS
  • 3 de jul.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 3 de jul.

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“O falar não se restringe ao ato de emitir palavras....” - Djamila Ribeiro


Do outro lado do mundo. Do outro lado da rua, fora do meu território, quando um sentimento se manifestou em mim - o da hipocrisia que me atravessou sem que eu pudesse impedir. 


SIM!  Sem que eu pudesse impedir!


Passeava pelas ruas de um verão em Barcelona, num lindo final de tarde movimentada quando, de repente, uma cena atravessou meu caminho:


Dois rapazes, do outro lado da calçada, foram abruptamente coagidos por três outros rapazes que, aparentemente, não eram policiais – se eram, estavam à paisana. 


Embora pareça uma informação nada a ver, eles eram fortes, altos, malhados, muito bonitos e foi sobre eles que lancei meu olhar estarrecido...


Um dos supostos policiais me viu observando e também me enviou seu olhar estarrecedor, desse momento em diante, uma comunicação surreal se estabeleceu entre nós.


Com a cabeça levemente inclinada, os braços abertos e com as palmas das mãos voltadas para cima, mentalmente perguntei:


- Que isto?! O que está acontecendo?


Ele com a mesma postura e balançando negativamente a cabeça, respondeu:


- Não estou entendendo! 


E como uma estátua, mantendo a mesma postura, continuou me olhando, esperando minha rendição. Enquanto eu, também, esperava pela rendição dele. 


Meus companheiros de viagem, ao perceber, se aproximaram e tentaram me tirar dali.


- Você não pode fazer nada! Vamos embora!

- Se eu ficar aqui, posso impedir...

- COMO ASSIM?! Eles devem ser policiais e já estavam seguindo os dois!

Continuei resistindo:

- Quem garante?! 


Meu irmão enfureceu:


- PELO AMOR DE DEUS, vamos embora! Você pode complicar sua vida se ele resolver tirar satisfação...ELE ESTÁ TE ENCARANDO!


Observei a movimentação. Meu Deus! Todo mundo passava sem parar... Ninguém se interessava pela cena.

Meu irmão já meio desesperado, disse:


- Você quer se aproximar?! VAI! Mas se prepare para levar ferro...Vamos ficar aqui te esperando.


Balançando a cabeça negativamente, respondi:


- Só quero que eles saibam que tem alguém assistindo e pensem duas vezes antes de...


De repente, o suposto policial que me encarava, estava com o celular de um dos rapazes na mão.  Abriu.


Olhou. Levantou a cabeça e jogando o rosto para frente, fez gesto de:


-  ESTOU TRABALHANDO! 


Respondi com o mesmo gesto, levemente inclinando a cabeça e ele, então, fez um outro gesto e me enviou o olhar de:


- PARA DE PERTURBAR! 


Da mesma forma, com o olhar suavizado, perguntei:


Posso ficar tranquila? 


Ele então fez um gesto em direção ao celular e, em seguida, me chamou com o dedo indicador rente ao corpo, apontando o chão. Gesto que significa:


- COMPAREÇA! 


Um gesto considerado grave – fiquei sabendo depois - e que pode levar a sérias consequências em caso de desobediência.


E por não saber disso, acenei um NÃO com a cabeça e com o olhar declarei minha dúvida e a minha impotência.


“O segredo da comunicação não é ter ...palavras e sim a capacidade de prever o que o outro vai entender”.


O rapaz do celular percebeu minha presença e, alimentado por uma leve esperança, gesticulando me chamou, indicando a tela do celular.


Meus parceiros perceberam a gravidade crescendo.


- VAMOS EMBORA! - disse minha sobrinha.


Respondi, me afastando do local:


-  Vamos! Estou sentindo impotência!


Ela tão fofa parou e disse:


- Não podemos ir com você se sentindo assim! Quer ir lá? Vou com você! Vamos nos complicar, parar na delegacia, esperar eles pesquisarem nossa vida no Brasil e depois que descobrirem que não temos antecedentes criminais...Nos soltarão!


Interferiu meu irmão:


- Mas antes, vão sacanear e nos fazer passar a noite na delegacia. 


E com aquela sensação de impotência, respondi:


- Vamos embora! 

- Tia, mas você vai ficar mal assim? 

- Vai passar!...


E meu irmão com seu jeito de irmão mais velho:


- Não tenha ilusão de que possa mudar o mundo! Cada um por si, você não pode garantir a vida do outro! Você não sabe o que o outro é! Pensa bem o que você pode provocar com sua atitude de turista que não conhece as leis do país! O cara deve estar p* com você! Pensando: estou aqui, correndo risco de vida para garantir sua segurança, sua filha da... e você me questionando?!


Então, sem saber mais o que pensar, já saindo do local, parei, respirei fundo, olhei para trás e deparei com a cena deles algemando os rapazes...


- VIU! São policiais à paisana! Ninguém anda com algema sem ser policial... – disse meu irmão.


Olhei pela última vez para o suposto policial. Ele me olhou bem indignado, como alguém que já estava mesmo perdendo a paciência. E tive a certeza, naquele momento, de que era hora de abandonar o local para não complicar a vida de todo mundo.


A política não deveria ser a arte de dominar, mas sim a arte de fazer justiça”.


Seguimos, sem que eu e o suposto policial nos despedíssemos. Hoje, me pergunto que comunicação bizarra foi aquela! Não falávamos o mesmo idioma e nos comunicamos maravilhosamente bem a ponto de envolvermos sentimentos e lembrei de algo que li uma vez:


“A comunicação acontece quando os ruídos se entendem”.


Voltando para a nossa hospedagem, meu irmão aliviado não parava de me dar exemplos de gente que se ferrou por falta de noção:


- Você teve muita sorte! Se esse policial tivesse se aproximado ia descobrir que era turista, desconfiar de sua atitude, colocar você como suposta cúmplice dos rapazes... Afinal, havia se envolvido! VOCÊ IA SE FERRAR!


Sem saber o que sentir, respondi:


- Como viver sem ser hipócrita? Se temos que assistir situações suspeitas, sem coragem de agir...


Meu irmão perdeu a paciência:


- VOCÊ ESTÁ ENTENDENDO QUE É UMA TURISTA?! E como turista questionar um policial pode ser a sua morte?! Você não conhece as leis daqui!


E continuou:


- TOMA CUIDADO! Você pode se complicar toda tentando salvar quem você nem conhece! TENTANDO SER HEROÍNA! 


Minha cunhada fofa, tentando me apoiar, sem tirar a razão do companheiro: 


- Eu entendo você! Agiu com o coração! Isso é bacana, mas é também perigoso tirar satisfação em situação que não conhece.


Sem resolver, entender, salvar, ou seja lá o que for, sem fazer o que fosse possível fazer... Segui meu caminho de volta - um caminho povoado por artistas de rua. 


Enquanto escutava aquelas vozes, aqueles sons, aquelas canções, ia pensando: O que vale pensar justiça se na hora da ação é a força do sistema que domina?!


E voltei para casa como se tudo estivesse correto, como se tudo fosse o que desejássemos que fosse, naquele entardecer lindo de Barcelona.


Nunca esquecerei a comunicação bizarra que estabeleci com aquele suposto policial, naquele encontro em que nos interrogamos, nos desafiamos, sem pronunciar uma única palavra, porque no contexto das palavras, a comunicação não seria entendida.


Eternamente perguntarei: O que aconteceu, depois que me retirei da cena, naquela tarde em Barcelona?


“A hipocrisia está tão presente em tudo, que fico a pensar que é quase impossível que um de nós já não tenha vestido suas roupas, caminhado com seus calçados, e falado com a sua língua.”

- Augusto Branco


Três anos é o intervalo entre essa cena em Barcelona e a minha sensação de impotência que permanece me dominando frente ao sistema político, sem deixar de alimentar minha esperança:


“A revolução do futuro será 

o triunfo da moral sobre a política”.


Aos meus parceiros dessa viagem, minha eterna gratidão!

@hugobretas / @carmemrios / @carolinariosbretas

NAMASTÊ!





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14 comentários

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Convidado:
20 de jul.

Beth, acho que eu daria um outro título para o seu texto. IMPRESSÃO DE VIAGEM Em linguagem universal. Maravilhosa forma de perceber como uma possível injustiça mexe com a nossa sensibilidade. Isso para mim é empatia. Parabéns, Beth pelo texto e pelo envolvimento com.a situação

Gostei muito.

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Junia Cristina
10 de jul.

Sozinhos em meio a multidão. Pessoas lado a lado mas não se olham, não se ajudam, fatos de um mundo “moderno” e o difícil posicionamento de intervir ou sair… Fato, é! Nossa busca é por um mundo mais justo. Abraços, Júnia

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Maria Anésia
07 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Que situação, hein Beth? Valeu a pena seu gesto de observar, por um tempo, uma cena inusitada em ruas desconhecidas. Creio que os rapazes abordados, certamente pensaram:

- Tem alguém compartilhando nossa aflição e não se sentiram sozinhos. E essa sua atitude inibiu a força dos policiais, pois a cena poderia ter sido muito mais dolorosa. Comunicar não é tão difícil, basta ter coragem de ficar de frente com o receptor. Às vezes, corro de medo.

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Convidado:
07 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Beta, só que não eram "supostos policiais". ERAM policiais. Eram policiais civis.

Cuerpo Nacional de Policía.

Na Espanha, o CNP é responsável pelo policiamento em áreas urbanas.

@irmão mais velho

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Convidado:
04 de jul.
Avaliado com 5 de 5 estrelas.

Triste porém real! Que a gente siga com força e coragem pra encontrar nossos limites mas não nos acostumarmos!

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