PRIMAVERA À BRASILEIRA − FLORES, INSTINTOS E A ESTUPIDEZ HUMANA −
- JEFFERSON LIMA

- 9 de set.
- 5 min de leitura
Escrevo esta crônica às portas de setembro — o mês das flores, do clima ameno, sobre o qual, de modo utópico, Beto Guedes cantou: quando entrar setembro e a boa nova andar nos campos, quero ver brotar o perdão. Mas também não me esqueço da declaração de Vanusa: fui eu que em primavera só não viu as flores e o sol nas manhãs de setembro.

Confesso que a desilusão de Vanusa traduz melhor o que se passa dentro de mim nestes dias do que a utopia de Beto. No entanto, não é sobre meus sentimentos que desejo me deter aqui, mas sobre o que se desenrola em nossos corações humanos ao longo dos séculos, até os dias atuais.
Para muitos brasileiros, este setembro traz a expectativa em relação ao julgamento de um ex-presidente da República. Ainda que alguns não admitam, é grande o número de pessoas que torcem para que a sentença resulte em prisão. Mas por que desejamos que as pessoas sejam presas? Desde quando passamos a entender que a privação de liberdade, o “enjaulamento” de um ser humano, é uma punição adequada para quem não consegue comprovar sua inocência?
Esse é um tema que me inquieta, pois, de certa forma, revela nosso instinto mais primitivo, bruto, não lapidado. Com todos os avanços científicos e as maravilhas tecnológicas do último século, ainda pensamos — sem pudor, me incluo aqui — em prender pessoas: torcemos e até nos satisfazemos com isso.
Na Antiguidade, as prisões eram calabouços e masmorras. Estar preso não era uma pena, mas sim uma custódia: o condenado aguardava a execução da verdadeira punição, que poderia ser de açoites, trabalhos forçados ou até mesmo a morte.
A prisão como pena só se consolidou a partir da Idade Média. Segundo artigo da jornalista Tayline Alves Manganeli, publicado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM):
“O conceito de prisão como forma de punir os indivíduos surgiu na Idade Média, quando membros do clero eram forçados a se recolher em suas celas quando não realizavam suas atividades de forma correta. Lá ficavam para meditar e se arrepender dos seus atos. O Hospício de San Michel, em Roma, foi a primeira instituição penal construída no mundo. O local era destinado ao encarceramento dos jovens que tinham condutas condenadas pela sociedade, chamados de ‘meninos incorrigíveis’.”
Desde então, a história do sistema prisional mundo afora é conhecida: presídios se multiplicaram e, em sua maioria, continuam insuficientes para acomodar todos aqueles que cumprem seu tempo de detenção.
Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, divulgados em fevereiro de 2025, aproximadamente 850 mil pessoas lotam as prisões brasileiras — a terceira maior população carcerária do mundo. Essas milhares de pessoas alimentam outras estatísticas: superlotação, violência interna, mortes, incidência de doenças decorrentes das condições insalubres, tentativas de fuga e, o que não é surpresa (mas deveria nos indignar), muitos já cumpriram a pena e continuam presos pela morosidade e pela burocracia. Outros, ainda aguardam julgamento, numa espera que caminha no ritmo lento dos tribunais.
Quero agora direcionar o olhar para nosso comportamento enquanto seres humanos. Reconheço a necessidade de que algumas pessoas sejam realmente detidas e mantidas fora do convívio social, seja em cadeias, clínicas ou colônias, conforme cada caso. Alguns não conseguem ajustar suas ações à vida em sociedade. No entanto, há ilícitos que, uma vez cometidos e analisados, poderiam ser tratados fora das grades.
Calma! Antes de me julgar, convido você a acompanhar meu raciocínio de coração aberto, mente atenta e alma leve. Permita-me justificar o nome desta coluna — A Poética do Olhar!
As razões pelas quais as infrações acontecem são variadas: fome, necessidade extrema que impede vislumbrar outra solução, desespero que tira a razão e, infelizmente, a certeza da impunidade. (Não incluo aqui as ações do crime organizado, dos assassinos em série e das atrocidades mais hediondas. Estas, sim, exigem a retirada imediata do convívio social.)
Acredito, contudo, que deveria haver outros meios de punir e, ao mesmo tempo, conscientizar o infrator. Um delito deveria envergonhar quem o cometeu pelo simples fato de ter sido exposto. — Sim, sei que isso soa utópico.
Por exemplo: sabendo que uma arma tem como finalidade matar, por que alguém a compraria, se não tivesse essa intenção? Qualquer pessoa que, num ato impensado, dispara um tiro contra outro ser humano, deveria se sentir envergonhada de tal ato. Penso até que a indústria bélica deveria ser estatal, e que sua produção fosse restrita às demandas das Forças Armadas e das polícias.
Outro exemplo são os casos de corrupção, que envolvem, em sua maioria, políticos e empresários em busca de mais poder e dinheiro. As nossas leis, tal como estão escritas, são rígidas e exemplares. No entanto, projetos e emendas que blindam os corruptos das punições brotam como mato em terreno baldio. Qual é a lógica? Não deveriam eles se constrangerem diante da exposição de suas atitudes? Como ainda se lançam em campanhas por votos? E por que razão votamos em alguém, cientes de suas transgressões?
Quando, através de uma enxurrada de notícias, recebemos uma overdose de informações sobre corrupção, assassinatos e crimes diversos, aflora o nosso instinto primitivo e bradamos: “Cadeia neles!”, colaborando para aumentar o número de encarcerados nesse zoológico humano.
A realidade, no entanto, é dura: os corruptos envolvidos nos grandes esquemas, em sua maioria, vão para prisões especiais ou domiciliares, sem qualquer sinal de arrependimento. Enquanto isso, o desempregado que, em ato de desespero, comete um furto, vai conviver com criminosos contumazes em ambientes inabitáveis.
Sem hipocrisia, sabemos que, em sua grande maioria, cadeia no Brasil é para preto e pobre. Que chance ele terá de se ressocializar ao sair?
E nós? Estamos dispostos a tratar um ex-presidiário como alguém arrependido, que merece nossa confiança, convivendo em nossos espaços de trabalho e de vida social?
A jornalista Fernanda da Escóssia, em 2023, numa matéria para a Agência Pública, escreveu:
“Em todo o Brasil, apenas 24% dos presos trabalham, mostram dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais. Em Minas, são 28%, e somente 15% têm acesso a estudo dentro das prisões. Não há um dado exato sobre ressocialização. De acordo com o Núcleo de Estudos da Violência da USP, 46% dos egressos retornam para as prisões após reincidir em delitos — o que não quer dizer que os 54% restantes conseguiram se restabelecer após o cárcere. Exemplos bem-sucedidos de ressocialização são exceções que se enquadram num perfil claro: costumam ser réus primários, ter sólida estrutura familiar ou contar com uma mão amiga fora da prisão.”
Eu gostaria muito que a canção de Beto Guedes se tornasse realidade: Já choramos muito, muitos se perderam no caminho. Mesmo assim, não custa inventar uma nova canção que venha nos trazer sol de primavera. Abre as janelas do meu peito, a lição sabemos de cor. Só nos resta aprender. Mas sei que esse é um desejo ainda impossível, pois, como disse o sábio Salomão em seus provérbios, no coração humano há perversidade; o tempo todo planeja o mal, e seus pés se apressam a correr para ele.
Enquanto reflito sobre esse instinto que nos satisfaz ao ver alguém ser levado à prisão, constrangido por reconhecer o impostor que vive em mim*, lembro-me da canção de Renato Russo que nos convida a celebrar a estupidez humana.
Resta-me, então, confessar o prazer que sinto ao cerrar os punhos, erguer o copo e gritar em alto e bom som:
CADEIA NELES!
*Referência ao livro “O Impostor que Vive em Mim”, de Brennan Manning, que explora a luta interna entre a autenticidade e a falsa identidade que todos nós criamos.
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Nós e nossa triste realidade de acreditarmos que podemos salvar o mundo,sem combater o sistema que cria e protege quem abusa do poder...
Um abusador de poder,ao ser retirado, cederá espaço para outros abusadores assumirem e,novamente, serem combatidos...
Criando um ciclo sem fim.
Namastê!
OI Jefferson, seu texto leva a inúmeras análises e reflexões. E o brasileiro precisa disso. Talvez assim, agiriam de forma mais correta. No decorrer de uma leitura preliminar de seu texto, muita coisa mexeu comigo. A desigualdade social que tanto me preocupa. Um ladrãozinho na rua é preso na maior facilidade, um gigante ladrão como Bolsonaro precisa de um processo longo para ser condenado e muitos chorando por isso. Quem é o homem na terra? Gostaria de entender. Você falou que no Brasil, apenas 24% dos detentos trabalham e uns poucos estudam. Olha, trabalhei na APAC de Santa Luzia e minha pergunta é: Por que não têm outras APACS? E sabe quem inventou a APAC, um senhor que presenciou u…
Maravilha de texto, Jefferson! Você trabalhar a crueza da realidade penal e dos criminosos com a leveza e a beleza da primavera é magia pura e naestria na arte de escrever. Que bela reflexão você coloca tanto para o lado social quanto para o individual. Seu talento como cronista não é novidade para mim. Há muito tempo, eu canto esta pedra. Para mim, a coluna A poética do olhar é a casa onde habita os belos textos com janelas abertas para a belas reflexões. Isso, sim, é primavera.
Parabéns!!! PARABÉNS!!!
José França
Caro Jefferson, você é muito talentoso. Gosto muito da sua escrita. Texto muito bom, nos trazendo reflexões sobre a sociedade. Entretanto, não acredito que alguns, mesmo sendo expostos, se envergonhem de suas ações. O meio político e judiciário nos dá exemplos disso o tempo todo, com o cinismo que lhes é peculiar. Abraços.
Jefferson,
Setembro, o mês das flores, tão bem representado pelos exuberantes ipês, ora conspurcados pela sanha dos que almejam permanecer para sempre no poder, merecia iniciar com eventos melhores. Mas, infelizmente, nós humanos aprendemos mais pela dor do que pelo amor, pelo perdão. Então, sem anistia, meu querido amigo.
Parabéns pelo belo texto.
Abraço,
Ilma